DROMEDÁRIO
Para Caio Fernando Abreu.
Sento
no sofá e sinto uma pontada. Imagino que meu coração foi trocado por um ovo
apunhalado, mas não recordo exatamente o momento da ocorrência. Por isso desisto de dar queixa. O Jeito é conviver com a faca que me cravaram
no peito quando estava distraída. Deixar de beber, de fumar, sei lá, qualquer
coisa que prolongue a vida, que aumente o ar. Na televisão houve mais um
assassinato e o bandido fugiu. Presto
atenção, não é um assassinato comum, é uma chacina, mas ninguém liga para
chacinas. Há um suspeito: mostram a foto. Leve semelhança com alguém que
conheci. Será o bandido da faca? Não, não é possível. Assassinos profissionais
não estilhaçam corações solitários, isso não dá dinheiro e é preciso técnica
para fazer o transplante.
Tento
levantar, mas tenho uma protuberância no peito que me impede os movimentos, já
desisti da polícia, todos desistiram, só as sirenes são incansáveis. Imagino que se ficasse sentada ali a noite
inteira talvez colocasse o ovo para fora
de alguma forma. É preciso chocar a dor. Não somos melhores que as galinhas.
Alguém poderia telefonar e eu pediria ajuda. Tento alcançar o telefone em vão.
Toda tentativa é inútil enquanto o ovo não sair. Penso na faca, atravessará meu
esôfago ou meu ânus, e o que fizeram com meu coração? Deram aos homens? Aos
Porcos?
Passo
a mão nas orelhas e percebo que estou sem brincos, não lembro de tê-los tirado,
sinto frio e percebo que estou nua, tenho, além dos seios, outra pequena
protuberância na barriga, acho engraçado: três montes vistos de cima, quatro
com o caroço no seio esquerdo. Imagino um dromedário invertido e bem dotado,
com quatro corcovas na minha barriga. Faz tempo que não me depilo. Tenho
caroços na pele, pequeninos, sempre tive, mas fazia tempo que não os
observava. Pioraram com o tempo. Lamento
os caroços e a falta de pêlos do dromedário, pois os pêlos só cobrem a região
do Púbis e sinto frio. Recordo do passeio no Jardim Zoológico quando era
criança. Ríamos do bafo dos camelos, não lembro a diferença exata entre um
camelo e um dromedário e entro em crise de identidade. Tento imaginar outro
bicho, mas não consigo, volto à galinha, não tomei banho e o cheiro é
insuportável.
Após
o noticiário vem a novela e nenhuma mocinha parece um dromedário, concluo que
não sou mais uma mocinha. Na novela todos estão felizes, ninguém teve o coração
trocado por um ovo apunhalado enquanto atravessava uma avenida ou vagava numa
praia, concluo que as novelas não são verossímeis.
Propaganda
de Campanha contra câncer no seio. O ovo pode sair com uma cirurgia, tenho
dúvidas se continuarei viva após uma simples operação e por isso acendo outro
cigarro despreocupada com a possibilidade de câncer no pulmão. O chão está
imundo e a gata mia desesperada. Penso que alguém vai entrar e me tirar desse
marasmo. Brinco com a morte. Na minha vida só restaram fantasmas e eles não
virão me socorrer e se viessem seria estranho pois não consigo me mexer.
Ficaria apática, o terror sobre as pupilas e só compreenderia quem olhasse nos
meus olhos. Imagino que nesse momento alguém poderia aparecer e trazer um
espelho, sempre quis ver a morte de perto. É uma atitude fria e calculista, me
diz a mocinha da novela que de dromedário não tem nada, e pelo visto decidiu me dar lição de moral (fantástico!). É fácil
dizer isso quando não se é um dromedário com quatro corcovas entre os seios e a
barriga, um punhado de pêlos na vagina e um ovo apunhalado no lugar do coração,
respondo indignada e decido ignorar a TV.
Tenho
sede e penso em me arrastar até a cozinha, mudar de ambiente. A gata está
desesperada, o chão imundo e continuo nua. Peso os prós e os contras. É preciso
ter calma para morrer. Lamento não ser um dromedário, pois não teria esse
problema, meu peito já é um deserto e a adaptação seria mais fácil. O trajeto é
curto, mas tenho medo de deixar o ninho e matar a dor. É preciso chocar a dor,
repito para mim mesma. O sofá é vermelho e se eu menstruar ninguém vai
perceber. Lembro que isso é impossível agora. Vou publicar um anúncio nos
Achados e Perdidos quando sair daqui:
“Troca-se
um ovo apunhalado por um coração novo”.
A
gata mia de novo e decido não levá-la comigo para a tumba, não sou Faraó.
Seguro nas paredes e alcanço a cozinha. Piso em bitucas de cigarro. Encho um
copo, bebo, encho outro, coloco no chão. Sento, meu pé está da cor da gata.
Sinto ânsia de vômito. Inclino a cabeça. Fico feliz.
Do livro: Crônicas de Uma Tara
Gentil. Vanessa Molnar.