terça-feira, 14 de outubro de 2014

Sete Pecados - Poema em Construção

Sete Pecados sem exercício

Bosch - O Jardim das Delícias.

Canto I – A Gula

Afogada 
na imobilidade do pecado
 tateio com a ponta dos dedos
seus ossos escondidos
E nesse mergulho me sento
sobre a moldura de mil homens
que se hostilizam no paraíso
e por causa da primavera 
eu raspo meus pelos pubianos
como se raspasse meus delírios
e aumento o fascínio do banquete
 sujeitando seu rígido membro
 a um rigoroso regime
            e  no fim da Estação
          arranco sua língua morta
        de dentro dos meus Eclipses.

Canto 2 – A Avareza

E por que haveria eu de querer sua alma na minha cama?
se tenho seu membro sujeito ao meu fixo calendário
e às cruéis temporadas de abril. 
Pode economizar seu ralo sêmen de esfinge 
que eu economizo minhas palavras gentis
e quando você menos esperar
lhe possuo sem um pingo de febre
como uma cadela possui um macho
cegado pelas trevas do cio.


Canto 3 – A Luxúria

Porque dentro da minha buceta
tudo é faca e arremesso
 eu me arrisco
e espio no espelho
o movimento dos seus quadris
e te sinto escorrer lânguido
sobre minha pele seca
após seu líquido impuro
 ter sido derramado
como o óleo de um navio
E peço que me sufoque de novo
 nesse nosso jogo adâmico
 onde eu faço papel de Ofélia
e me afogo dentro de mim.



Sete Pecados


Sete Pecados sem exercício

Canto I – A Gula

Afogada na imobilidade do pecado
persigo com a ponta dos dedos
seus ossos escondidos
E nesse mergulho me sento
sobre a sombra de mil homens
que se hostilizam no paraíso.
E raspo meus pelos pubianos
como se raspasse meus delírios
e aumento o fascínio do banquete
arrancando da língua de Adão
poemas, luas e um eclipse.

Canto 2 – A Avareza

E porque haveria eu de querer sua alma na minha cama?
se tenho seu membro
sujeito ao meu rígido calendário
e às secas temporadas de abril.
Pode economizar seu indócil sêmen
que eu economizo minhas palavras gentis
e te possuo sem um pingo de febre
como uma cadela possui um macho

nas trevas do cio.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Batismo

Fotografia de E. Weston

Batismo

Com o sêmen do passado
eu resgato
nossos órgãos divididos
entre a Chuva e o Cerrado
e me banho de novo
na incomunicabilidade
de uma tarde esguia.
E deixo que me atinja
com sua saliva lasciva
e que tinja minha vulva
com um vermelho marfim
E para enxugar os pecados
do meu dolorido corpo
 permito que você seja parido
no mais fundo de mim
 e te batizo de novo
e proclamo o fim dos sonhos
e te conto
 que se o mundo não fosse tão líquido
nós não seríamos assim.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014


TINA
Parte I
               
                Fui praticamente chutado para frente de uma moça de óculos que, sem levantar a cabeça, me fez rapidamente as perguntas de praxe: nome, idade e profissão, mas na terceira  me embaralhei e declarei que era palhaço. Ato impensado que, além de eliminar aquela que, nas atuais circunstâncias, tinha se tornado a pergunta mais importante, me condenaria, com certeza, aos piores trabalhos e acomodações.
                Preocupado, não vacilei e ergui de modo instintivo e brusco a criança maltrapilha que estava ao meu lado declarando que éramos dois, e quando a moça perguntou se era minha filha, eu disse que sim, e antes que ela tivesse tempo de elaborar qualquer outro tipo de questionamento a respeito daquela criança loira e inquieta me apressei em explicar que minha mulher estava agora na companhia do bom Deus e, sem saber se tinha sido salvo pela criança ou pelo nome do Senhor, fui encaminhado ao Departamento de Caridade.
                O fato é que os circos haviam sido proibidos, e eu, pela primeira vez na vida, ficado desempregado, mas mesmo após ter perdido tudo, não me desesperei, juntei minhas poucas coisas e me mudei para um recanto distante, uma vala que se formava sob um viaduto abandonado e escuro com a intenção de me esconder do mundo enquanto decidia o que fazer, mas meu sossego durou pouco, logo me encontraram e após um breve alvoroço me encaminharam, junto com uma menina cabisbaixa que havia me seguido, ao Centro Comunitário. Pelo visto o novo governo não queria saber de gente desocupada perambulando pela cidade e incentivava seus membros fiéis a prenderem e, se necessário, até a matarem essa gente teimosa que se negava a aceitar a felicidade que estava reservada para cada um de nós.
                No Centro, graças a um resquício de humanidade que havia restado na funcionária magricela e que parecia estar refletido na lente dos seus óculos sujos, para morrer em seguida nos seus lábios mudos, pudemos tomar um banho, coisa rara, pois já fazia alguns anos que a água estava racionada. Um Senhor de idade que tomava banho no Box contíguo ao meu se distraiu e começou a cantar uma espécie de tango, mas logo tomou uma coronhada e o silêncio voltou a dominar o local. Só eram permitidos Hinos.
 Após o banho e com a promessa de uma refeição decente, me fizeram assinar uma série de documentos e papeis inúteis com a finalidade de nos classificarem para fins administrativos.  Inventei tudo, nomes, antigo endereço, histórico médico, grau de escolaridade e datas de aniversário e só depois disso, com o desdém com que tratavam os vagabundos, nos entregaram um pão com manteiga e uma caneca de leite e nos encaminharam para um dormitório coletivo com a promessa de que amanhã eu não escaparia do meu Glorian Day.
                Acordamos cedo e fomos novamente encaminhados para uma fila. Alice foi matriculada na escola e eu fui trabalhar temporariamente como auxiliar de enfermagem no asilo da cidade. Depois do fracasso da entrevista decidi inventar um curso de técnico de enfermagem e os organizadores decidiram me dar uma chance, apesar de eu ter declarado que não tinha nenhuma experiência na área. O agente explicou que o prazo máximo de permanência no Centro era de sessenta dias. Depois disso, eu deveria alugar um quarto e partir. Se necessário, eles me ajudariam. O único objetivo deles era me fazer uma pessoa feliz. Estava tudo no longo regulamento que me entregaram e que eu não li. Eles serviam café da manhã e janta e também ofereciam cursos rápidos de profissionalização e alguns cursos noturnos que tinham como objetivo a elevação do espírito (era assim mesmo que estava escrito) e a participação em pelo menos um deles, era obrigatória.
                Descobri que estavam sendo oferecidos três cursos: Poesia, Teatro e Introdução à Filosofia. Segundo os folders os objetivos eram comuns: Tentar recuperar as almas indóceis através de um processo paulatino de socialização em busca da alegria e com a certeza de que todos eram abomináveis, (já que nada disso me interessava), decidi me inscrever no curso de poesia e no primeiro dia de aula descobri que eu tinha razão: A poesia era apenas uma desculpa para a instauração de um verdadeiro muro das lamentações. Eles escreviam pouco e o verso livre era proibido. A rotina se resumia em ouvir as histórias de vida dos participantes, nos moldes dos alcoólicos anônimos e, ao final da sessão, escutar um soneto de gosto duvidoso que o orientador lia de acordo com o tema escolhido para a noite. O lado perverso disso tudo era que, aparentemente, os temas podiam ser escolhidos livremente pelos participantes, mas, por alguma razão, semana após semana, o tema do amor bucólico se repetia e todos pareciam satisfeitos.
                Não demorou muito e logo notei que só havia gente solitária como eu no curso. Provavelmente o resto do mundo estava feliz celebrando a vida com suas famílias nos shoppings que eram, agora, o único lugar recomendável e seguro para se divertir.  Entre os participantes, todos muito tristes, uma mulher chamou minha atenção, não porque fosse bonita, mas porque era a única que, como eu, se dava a dignidade de ficar calada e, em um dia de chuva, tomei coragem e a convidei para sair.
                Ela aceitou e fomos até a cozinha tomar um café frio. Não era exatamente um passeio romântico, mas a falta de dinheiro nos deixava sem opção. A voz dela era agradável e seu cabelo, assim como seus dentes, perfeito. Além disso, ela tinha uma bela bunda e para mim isso bastava. Seu nome era Tina e ela trabalhava como recepcionista em uma agência de publicidade. Ela tinha feito uma dessas faculdades populares e descoberto, mais tarde, que seu diploma não valia nada. Havia uma verdadeira máfia de cursos, ditos superiores, instaurada no país. Tina era uma mulher solteira de 30 anos que, após ter estudado a vida inteira na escola pública, se equilibrando entre os subempregos que era obrigada a aturar e uma educação de quinta categoria, tinha sido convencida a fazer um curso de Administração de Empresas.
                Antes disso, Tina tinha sido uma cabeleireira independente, mas esse ramo havia sido dominado por uma associação comercial que, através de distintas estratégias, incitava todos a andarem extremamente arrumados, (mesmo que passassem fome para isso). Entre vários recursos, como a absurda proibição de se fazerem unhas em casa, eles disseminavam intrigas entre seus membros incentivando-os a fazerem comentários maldosos acerca da aparência das pessoas durante as reuniões que passaram a ser obrigatórias para todos que desejassem ser deixados em paz, e foi por causa disso que ela foi parar ali. Ela ficou desempregada e acabou sendo despejada do quarto e cozinha que tinha alugado na periferia.
                A vida era um tédio e a única coisa que eu e Tina podíamos fazer juntos era frequentarmos o curso de poesia e as reuniões de domingo enquanto a menina, que sempre nos acompanhava, passava seu tempo sendo adestrada pelas educadoras infantis. Alice logo gostou de Tina e a possibilidade de formarmos uma família agradou os líderes da organização que passaram a nos conceder alguns pequenos privilégios, como entregar uma fatia extra de pão para a menina, por exemplo, entre outras miudezas que engrandeciam mais os espíritos deles do que os nossos estômagos. Chegaram até a me presentear com a imagem de um cristo negro e com uma coletânea de poemas do Castro Alves, e eu logo tratei de pendurar a imagem na cabeceira da minha cama.
                Nas reuniões do Centro não havia tanta fofoca, já que lá todo mundo era pobre e, por essa razão, ela era uma das mais frequentadas da cidade, inclusive por gente que já havia deixado o local fazia tempo e que para poder continuar a frequentá-lo, alegava ter se afeiçoado ao pastor, um velho encardido e senil que nunca se lembrava de nada, se esquecendo, às vezes, de comparecer às suas próprias reuniões, principalmente as de domingo, fato abertamente lamentado por todos.
                Ninguém sabia explicar como as coisas haviam chegado a esse ponto, mas os poucos que não haviam sido engolidos pelo sistema e que tentavam manifestar algum tipo de resistência, (os que conseguiam sobreviver escondidos), tinham desenvolvido uma teoria que chamavam de “Teoria do Emburrecimento Paulatino” e juravam de pés juntos que o país havia sido vítima de uma conspiração iniciada há muitos anos dentro do sistema educacional.
                Eu sabia de tudo isso porque inconformado com o fim do circo e com a proibição da cerveja, que agora tinha ficado, (assim como todos os outros prazeres), restrita aos ricos que podiam comprá-la no mercado negro, tinha me juntado a um pequeno grupo de resistência para o qual Tina me apresentou (ela era viciada em tabaco e eu neto de um anarquista que, segundo meu pai, tinha acabado com a nossa família com sua mania de livros).
Eu queria me informar e ler mais, mas era tão cruel a jornada de trabalho que me era imposta, primeiro pelo meu pai e agora pelo asilo, que se tornava impossível desenvolver qualquer pensamento mais complexo a respeito da realidade, eu chegava exausto e após ter passado o dia inteiro dividido - entre a lembrança do odor dos bichos enjaulados, dos quais eu havia cuidado no passado, e a imagem esverdeada dos velhos desmemoriados dos quais eu trocava as fraldas no presente e que representavam meu futuro - no final do dia eu só conseguia me entregar à fantasia das novelas e à masturbação solitária ao lado do Navio Negreiro, e quando chegou meu dia de ir embora, com medo de ser totalmente absorvido pelo sistema, já que a tendência das coisas era piorar, eu deixei a menina com a Tina e caminhei em direção à ponte com o objetivo de deixar claro que, apesar de todos os esforços, eles não tinham conseguido me obrigar a ser uma pessoa feliz.
                 
                

terça-feira, 16 de setembro de 2014

SOLIDÃO DO BONECO DE CHUMBO


Para a dor de deitar raízes
sobre trapos
após amar
um boneco de chumbo.
          
               É sábado de carnaval e o soldado de chumbo arrasta solitário sua única e magra perna enquanto espalha sua voz anasalada pela viela, surda, cega e muda da Cracolândia: Confessando bem/ todo mundo faz pecado/ logo assim que a missa termina/ todo mundo tem um primeiro namorado/ só a bailarina que não tem.
            Era um sábado ensolarado, dia sagrado, de festa pagã, dia da iluminação dos pobres que escorridos de suor e desejo sambavam e descansavam misturados aos ricos pela avenida. Surpreendido, o soldado se deparou com a bailarina, que alheia a sujeira do seu corpo e do seu vestido, continuava bela, embora um pouco mais encorpada. Foram amantes no tempo passado, boneco e bailarina se masturbaram muito em histórias proibidas para crianças, histórias que não foram escritas. Ele fingiu não vê-la, mas ela se aproximou.
            - Olá, solitário boneco de chumbo. Venha, pois procuro companhia, um trago vai lhe fazer bem, e embora você não transpire, preciso de alguém que me escute.
            - Lamento, mas ainda procuro por minha perna.
            - Aceita um ácido?
            - Não, obrigado, parei de sonhar.
            - A imaginação é o alimento dos pobres, disse a bailarina engolindo o comprimido, e, além disso, toda essa realidade ainda vai te matar. Vejo que continua gelado, embora um pouco menos colorido.
            - Andei doente, mas já me curei há tempos.
            - O tempo é uma matriz composta de esquecimentos.
            - E de rancores, respondeu o soldado, com um sorriso ameaçador entre os dentes.
            - Não sei porque insiste, em uma guerra não há vencedores, todos saem desbotados, e, além disso, o sol nunca lhe fez bem.
            - O mundo é uma ferida preta e branca aberta por uma metralhadora em estado de graça.
            - Foi por isso que inventaram o álcool, os fogos de artifício, a poesia e os amores impossíveis, mas já que insiste em se manter triste, venha, quem sabe lhe encomendamos uma perna se conseguirmos encontrar algum artífice.
            - Só aceito se for de Baobá.
            - Continua exigente, é uma árvore antiga, talvez extinta.
            - Mas de fortes raízes.
            - Que seja, disse a bailarina, rodopiando em volta do boneco, é a árvore dos príncipes, mas veja, não é Gepeto aquele que se aproxima?
            - Não seja tola, é só um velho bêbado.
            - Vamos logo/ Gepeto não gosta de mentiras!/ Vamos, disse a bailarina arrancando a muleta da mão do boneco e o puxando por entre a multidão. Antes de ser esmagado, ele ainda gritou: - Em que momento saímos dos livros?
            - Também não me recordo, respondeu a bailarina ao se abaixar para um beijo de despedida, tudo o que sei é que era uma vez um soldadinho de chumbo que percorreu o mundo todo em busca de uma perna inexistente e em um sábado ensolarado de carnaval acabou morrendo atropelado porque não aprendeu a dançar.



Vampira


Fotografia de Cartier Bresson

Para o poeta JIVM

VAMPIRA

Estarei sempre ali
com a língua que roubei dos centauros
absorvendo seu líquido impuro
e não importa o quanto você desloque minhas entranhas
 com seus dedos molhados
 em direção a terra das musas
Porque lá eu também te engulo
contenho meu grito, me faço  puta, menstruo
 lavo seu sexo, seu escroto, beijo sua fronte
 te monto frígida fingindo núpcias
esfolo teus vermelhos quadris
te mato de novo, morro, me recomponho
te bebo lenta enquanto exploras meu cú
 e extermino os Narcisos
 que espalhaste sem piedade
 pelas cidades e pelos jardins.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

PARAÍSO TROPICAL 2

E foi assim mesmo que ele me contou no dia em que apareceu pela primeira vez. Tinha 40 anos, aparentava mais. Era um dia normal de trabalho, havia muitas pessoas na sala de espera. Ele cheirava a álcool e era tímido. Estranhei, porque o álcool costuma deixar as pessoas valentes, mas tinha qualquer coisa dentro dele, um medo demoníaco. Ele explicou que ela tinha ficado lá fora, então ofereci a cadeira, mas ele recusou. Disse que queria se livrar da pinga, que tinha família.
Eu disse que ele ia ter que voltar outro dia, mas ele não se moveu. Então senta. Insisti. E ele aceitou. Sabia que estávamos a sós e contou essa história que eu acabo de contar pro senhor. Não acreditei na história da banana, ele devia ser um menino e tinha também a parte do fumo, mas a hora estava adiantada e eu o convidei para a próxima sessão. Quarta à noite, repeti, e ele acenou com a cabeça, pegou o chapéu e saiu.

Sofía ficou no mar e nós desembarcamos. Agora éramos seis. Estávamos piolhentos quando entramos no trem. No cais, a mesma confusão e muitas bananas, lembro que sorri. Agruparam-nos por nacionalidade e mandaram aguardar. O navio tinha feito várias escalas. Tinha muitos negros no cais. Eu nunca tinha visto nenhum. Fomos andando até um casarão. Meu pai sumiu novamente e voltou com uns papéis: Esta noite vamos passar aqui. Eu não entendia nada do que era dito. No Brasil a língua era completamente diferente. Preferia ter ficado na Holanda. Dormimos amontoados como sempre e no outro dia, após o café que odiei, fomos em fila indiana feito gado até a estação de trem e como gados transportados até outro casarão, só que bem maior. Lá tinha médico, mas era tarde demais para a Sofía e tinha remédio para piolho também, arroz, feijão e banho, após um mês. Não esperamos muito, pegamos outro trem, dessa vez direto para a fazenda de café, aquele liquido horrível com o qual depois me acostumei, era aquilo que íamos plantar e eu senti saudades das batatas e das bananas. Jornada das cinco as quatro, seis dias por semana, eu, o pai André e Lúcia. A mãe cuidava da Catarina, cozinhava, levava comida na roça, lavava roupa, cultivava a horta quase imaginária e construía um galinheiro sem galinhas, pensando no futuro enquanto eu tentava não pensar em nada. Tinha aprendido a dar bom dia, mas o resto era bem difícil. Eu me esforçava. Aprendi a perguntar quanto custava no armazém e isso me deu a responsabilidade de fazer compras e aprendi a xingar também, mas só xingava em pensamento. A compra só podia ser feita lá. O capataz tinha explicado. Nossa casa era um galpão dividido. A antiga senzala, lugar onde moravam os negros, me explicavam, e eu estranhava, a água era do rio e a luz de lampião.
Passou o mês e o pai voltou calado. O dinheiro não dava nem para um caldo e a mãe queria comprar semente e pintinho e pano para costurar para aquele bando de gente remendada. A mãe chorou, nunca tinha chorado e o pai me bateu: O que você andou comprando no armazém? E eu não tinha comprado nada além do que a mãe tinha encomendado: Nada, falei baixinho e o pai saiu. Quando voltou estava mais sossegado. A gente tá sendo roubado. Falou. Minha mãe se trancou no quarto.
Então porque a gente não parte? Quis falar, e sonhei que a gente tava indo embora, montado numa carroça, para ir viver na cidade, lá tinha fonte e fruta e aqui só não tinha a geada, mas dava na mesma. Os meses passaram e nada de pintinho nem de pano, só arroz, feijão, café, batata e repolho, ovo só no domingo e às vezes, um tomate teimoso como a gente que a mãe tinha plantado e vingava.

Os meses passaram e meu pai sempre saía à noite. Um dia me acordaram a uma da madrugada e nossas coisas estavam amontoadas, cabia tudo em três trouxas. Longe da porteira uma carroça esperava e a família do Lituano João que tinha se acostumado a pinga e ao apelido também estava lá. Montamos e partimos. Fugimos, eu acho, mas meu pai, que tinha virado Antônio e não gostava, como sempre, não disse nada.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

  1. Ferida

  2. São fundas as feridas, como as viagens que se sucedem
    em busca de um céu mais quente
    e nada pode ser dito: Nossa infância pobre, nossos ritos
    e saímos lendo poemas pelas ruas
    Traçando rotas de esquecimento
    e acariciamos os cachorros perdidos
    e no desalento deles nos perdemos.

    São limpas e incorpóreas as feridas...
    Como as palavras dos velhos livros que lemos
    Como os brincos de prata que perdemos
    Como os pratos que não cozinhamos
    Como o vinho que não bebemos

    São profundas e incuráveis as feridas
    que desenhamos nas trevas do nosso avesso
    como as rugas coladas do desejo
    ou como os banhos que tomamos
    cravados nos azulejos

    São invisíveis
    as feridas que trocamos
    afogados nos trópicos imóveis
    do esquecimento.

Estudos Sobre o Gozo II

Estudos Sobre o Gozo II

FOGO

Observar obcecada
as bolhas levantadas
sob a nervura da nossa pele
precocemente senil
procurar loucamente
uma máquina do mundo
decomposta nos nossos rostos.
descobrir que  nossas bocas em chagas
são desejos desdobrados
dos nossos sexos em chamas.




TERRA

Enterrar seu corpo entre as eras
que separam teu membro impúbere
de um amadurecido  fruto de outono.
Te envolver em cravos vermelhos
e te guiar com uma vela
feito uma criança cega
que tateia nas procissões.

Te entalhar com vinho e erva
e te abandonar olhando a chuva
que espanta a multidão.

ÁGUA
Te oferecer meu púbis extático
para que o afogue em água rasa
até descobrir
de que substância
 é feito o vazio

Deixar que semeie
as circunferências das matrizes
até que eu agonize
e multiplicada pelo seu sangue
arranque minha última raiz.

AR
Te tratar como um fantasma
dançando com sua  ausência
no círculo lunar
 do escorpião.

Construir agoniada
uma teia feita de nada
que nos leve à impossibilidade
de um amor violentado
pelo pé estilhaçado
da dissolução.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014


 
Paraíso Tropical

 

Era meio dia quando Josef subiu no navio. A viagem havia sido longa e ele que, até então, nunca tinha visto o mar, só teve tempo de sentir um empurrão. Quase caiu, mas não precisou olhar para trás para saber de quem era aquela mão pesada que o segurou. Nunca tinha visto tanta gente junta, mas talvez aquilo não fosse novidade para o pai e era sempre o pai que mandava. Gostaria de ter ouvido uma voz dizendo: Olha Josef, agora vamos viajar muitos dias e você vai ter tempo de sobra para apreciar a paisagem, mas quando se deu conta o pai já havia sumido da fila e ele só viu as irmãs, o irmão e a mãe. Antes do navio eles viajaram três dias, direto dos campos da Hungria para a capital da antiga Iugoslávia. Onze irmãos, cinco vivos. A vida é difícil, a mãe suspirava toda vez que jogava um corpo na carroça enquanto o pai murmurava: Um a menos.

Toda essa viagem se resumia a isso, uma vida mais fácil: Passagens de terceira classe para outro mundo e pouca bagagem. A mãe segurava Sofía que ainda não podia se segurar enquanto o pai informava balbuciando que eles iam para a Argentina. Agora ele se lembrava. O pai tinha voltado e dito apenas: tudo certo. Devia ter ido acertar os papéis, as dívidas. Para ele aquilo parecia ser muito caro, mas se perguntasse pelo dinheiro apanharia. Tinha ouvido o pai dizer para a mãe que comeriam no navio e sentiu dor de estômago, um dia sem comer, água, só a que a mãe pegou da bica e ofereceu ao primogênito, como uma sina, o que sobrou.

No cais (palavra que ele só conheceu depois) tinha gente de tudo quanto é tipo com coisas que ele nunca tinha visto: mulheres elegantes, saias coloridas e comidas estranhas. O embarque demorou. Primeiro as pessoas cheirosas com suas grandes malas e frutas. Depois, o baixo clero da tripulação e, por último, eles, os da terceira classe que uma voz anônima chamou. Ele ouviu que a viagem ia demorar muito, vários dias e se assustou: Será que tinha sopa para todos aqueles que se espremiam? O pai achou um canto e colocou ali as poucas coisas e as cobertas. Eles não teriam cama, descobriu, e o colchão improvisado era para a mãe e as meninas, que juntas já não cabiam. O pai, André e ele dormiriam no chão: porque a vida é dura.

Ele não queria sentar e ficou debruçado na beira do navio olhando a cidade sumir enquanto o pai picava fumo e André não fazia nada, até  parecia que ele tinha nascido ali. As meninas olhavam tudo, mas eram muito pequenas para enxergar por cima da mureta e ele pensou que se chovesse as coisas iriam piorar. Um apito soou alto e causou um silêncio momentâneo enquanto a terra virava mar.

Josef pensava que aquela terra devia ser boa, porque se não fosse, porque viajar tanto? Por causa da fome? Mas então, naquele porto mesmo tinha até fonte e tanta coisa para vender. No campo eles plantavam, mas não comiam, tinha a geada e tinha o dono da terra e as feiras não tinham mais, tudo por causa da guerra que aconteceu bem no ano em que ele nasceu e ele achava que era por isso que o pai não gostava dele e não pôde se alistar... Guerra era aquela que ele tinha todo dia sem procurar.

Já fazia um tempão que eles estavam ali quando uma sineta tocou e um homem gritou qualquer coisa. O pai falou então para a mãe levar as crianças e ele se animou, mas sentiu logo aquele peso no ombro: você fica aqui pra tomar conta das coisas comigo, quando eles voltarem nós vamos. Não sobrou quase ninguém no convés e demorou muito para a mãe voltar e ele ainda pensou em dizer: porque o André não fica? Mas se calou.

Então eles foram e ele não sabia se aquela sopa tinha ficado velha ou era daquele jeito e achou que nunca ia descobrir. O pão também era velho e a água barrenta, mas o pai comeu como se fosse uma benção e ele fez o mesmo. Depois de comer, ele foi dar uma volta e um homem estranho, que falava uma língua mais estranha ainda, lhe ofereceu uma banana, ele não sabia o que era, mas aceitou e correu para bem longe da família, porque se alguém visse, provavelmente não ia sobrar nada e depois de descascar, como tinha visto e colocar aquilo na boca acreditou que a vida podia melhorar.

Quando voltou, o pai não o encarou, o pai só falava o necessário e quando se zangava batia, ao lado dele parecia que todo o mundo emudecia, até o som da multidão diminuía, ( isso só lhe ocorria agora) e depois de um silêncio enorme, ele perguntou se ia ter aquela fruta amarela aonde eles iam e o pai se limitou a responder: Não sei e se levantou: Cuide da sua mãe e irmãs. A mãe não disse nada, mas ele sabia que era ela quem cuidava dele.  O pai saiu e ela se espremeu para sobrar uma beirinha de colchão e foi bom para ele descansar, mas a noite começou a passar e nem o sono nem o  pai chegavam e ele se levantou. Tinha gaita e violão, bebida, rato e dançarina, mas ele não viu o pai não. Só depois de muito tempo é que o pai voltou, devia estar sem sono como ele, talvez também se perguntasse se haveria bananas na Argentina, mas abotoou as calças e dormiu como uma pedra, mal chegou. Ele, quando dormiu, já era manhãzinha e logo o sino da comida tocou. Chá frio e pão. E assim foi por muitos dias. A comida e o pai.

 Quando chovia, as mulheres e as crianças iam para o coberto, que não dava para todo mundo e os homens ficavam no convés, com sorte, com uma lona. Tinha gente que passava mal, vomitava e a sujeira do lugar se acumulava, às vezes jogavam uma água e amarravam as pessoas no mastro, que eram perturbadas pelas moscas do oceano, como as chamavam os marinheiros, mas que, na verdade, também imigravam atrás das bananas. No começo tinha remédio, depois acabou. Aos poucos, as pessoas se acostumavam e as que não se acostumavam morriam e eram jogadas no mar e ele achava até bonito, mas um dia a Sofía acordou com desarranjo, fazia agora um calor insuportável e seu corpinho também se foi, refrescado pelo mar, um pouco antes de chegar ao Brasil, conforme ele já tinha descoberto, mas seu pai, como sempre, não disse nada e ela ficou ali para sempre perdida na fronteira do nada, enquanto uma vida nova se aproximava com o vento quente do mar...