quinta-feira, 28 de novembro de 2013


EU
Sou do mês de janeiro

a morte me habita

nasci da tempestade

começo pelo fim
 

Eu sou filha de Saturno

e lavo as impurezas lilases

das carnes lubrificadas

que restam pelo caminho

Eu sou filha do tempo

carrego um escudo por dentro

atravesso insensível os campos

germino em corpos noturnos.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Fotografia de Cartier Bresson.


LEMBRANÇA
                              
Que magia é essa que emudece meu espanto
e arremessa minha razão de Centauro
contra as raízes caladas
 das sapatilhas da infância.
No seu avesso me reconheço:
Eu fui uma criança dolorida.


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Ismael Nery.



 Retrato

 

            Meu eu, que cisma sentado, esperando o trem, o auto na garagem, o retrato na mesa, o copo no chão, o celular na gaveta, o bom senso em qualquer lugar.

            Meu eu, do cão que late e morde ou do gato que acaricia e escapa, do riso zombeteiro, porque os bichos não choram.

            Meu eu, entre livros e sites, entre sapos e homens, entre diásporas e sonetos, entre a cidade e o gueto.

            Meu eu, histórico e retórico, pragmático e feiticeiro, escondido entre o culto ancestral e o futuro incerto.

            Meu eu, que se alterna, entre ressacas e insônias, cafés e cigarros, o fim do mundo e o fim do mês.

            Meu eu, que entre o sonho e o sofrimento inventado, canta no chuveiro (como todo mundo) mesmo que meu outro eu não goste.

            Meu eu, que insiste em passar do erudito ao kitsch, sem a menor explicação.

            Meu eu, que já amou, cafajestes e bichas, e que, por isso mesmo, insiste no fato verídico de que nunca amou ninguém.

            Meu eu, que não crê nos textos redondos, nas frases feitas, nas bocas tortas das senhoras católicas que recitam Shakespeare como uma oração.

Meu eu, que não aceita pronomes de tratamento, apesar da verdade dos espelhos e da cordialidade aparente das empregadas de balcão.

Meu eu que entra figura adentro, onde zumbe o inseto e a palavra se dilui.

            Meu eu, lunar e lunático que reina soberano no jardim da lua cheia, situado entre um subúrbio que já foi operário e as ruínas do muro Pós-Berlim.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013




A PRISÃO

É tudo verdade, afirmo sem titubear para a jovem assistente social que me olha com a raiva típica que os funcionários públicos adquirem das pessoas com as quais tem que lidar ao longo das suas monótonas carreiras. Conto minha história novamente, mas ela já não me escuta, então agradeço e digo que é melhor eu ir andando, meu filho deve estar preocupado, justifico, e ela, se sentindo profundamente ferida pela minha ousadia em sair sem pedir sua permissão me manda esperar e me entrega uma quantidade absurda de formulários e uma caneta mastigada. Ignoro o sorriso sombrio que lhe escapa pelo canto da boca pendurado em um pequeno fio de saliva que ela aspira com avidez e abaixo a cabeça fingindo concentração.

Avisto o sol pela janela e sinto que ela quer se vingar, como se eu fosse culpada pelo fato de ela estar envelhecendo rapidamente cercada por uma pilha interminável de papéis e leis inúteis e para evitar atritos começo a preenchê-los vagarosamente, como se estivesse segurando um lápis pela primeira vez e diante da minha aparente submissão a funcionária tranquilizada se afasta. Olho para a porta esperançosa e para disfarçar peço um cigarro para um velho que tem um maço amassado entre as mãos, ele cede mudo ao meu pedido e murmura algo que entendo como falta de fogo, nada inesperado, mas quando me levanto, o guarda aponta para a imagem de um cigarro cortado ao meio, concordo e aponto para a porta, mas ele repete o gesto e em seguida aponta para minha pilha de papéis que alguém colocou em ordem alfabética em cima de uma pequena mesa que eu ainda não tinha visto e que está encostada na parede.
Sou obrigada a sentar de costas para a janela e olho com raiva para o velho, afinal não havia mais ninguém ali. Agora, tudo que vejo é um relógio antigo que gira lento sobre  minha cabeça e uma tela em branco que pertence a um computador quebrado que exibe a mensagem Sem Sistema.  Sem saída decido começar a preencher os formulários. Noto que são muito estranhos, alguns são repetidos e além das informações comuns, como nome, filiação e endereço, há várias perguntas inusitadas, há, por exemplo, uma sobre animais de estimação: querem saber quantos cachorros tive e quais são as datas de nascimento e morte deles e se eu chorei em alguma dessas ocasiões, há outra sobre namorados pedindo a elaboração de uma lista em ordem alfabética com o nome de todas as pessoas com as quais me relacionei e a discriminação do grau de afetividade que senti por cada um em uma escala que vai de zero a dez. Irritada decido ir embora, mas quando giro a cadeira vejo que trancaram a porta e só o velho permanece  sentado com o mesmo maço entre as mãos. Me aproximo e pergunto se ele conhece o responsável pela repartição. Ele aponta para uma sala de reunião e me informa que é preciso colocar o nome em um livro preto localizado no balcão e aguardar na mesa para ser atendido. Fico preocupada quando noto que no outro canto da sala há outra mesa repleta de papéis, curiosa, tento me aproximar, mas quando estou quase tocando nela o velho surge na minha frente e me empurra zangado. Observo que o velho parece um duende sujo e decido esperar mais um pouco.

Sinto fome e sacudo uma garrafa de café que encontro sobre uma prateleira na qual bato a cabeça ao tentar me levantar rapidamente por causa de um barulho de cadeiras arrastadas que percebo dolorida ser o vento. Anoiteceu e o velho ronca sob uma pilha de jornais. O café está frio. Viro um copo seguido de três bolachas murchas e uma xícara de água e começo a inventar respostas com o intuito de responder aos formulários. Quando acordo a repartição está cheia. Avisto feliz a Assistente Social que me atendeu e corro até ela com meus papéis preenchidos. Ela folheia o calhamaço com ar de superioridade e me entrega três carimbos e uma almofada. Retorno envergonhada para minha mesa e continuo meu trabalho. Termino na hora do almoço, o velho me conduz pelo braço até a cozinha e coloca na minha frente uma marmita que nunca vi, como estou com fome engulo o arroz e feijão, agradeço e explico que tenho que ir, mas uma senhora alta e zangada diz que embora eu tenha concluído meu trabalho o expediente só termina às 18:00h. Passo a tarde rabiscando papéis e mastigando clipes e, para me distrair, incluo meu nome na lista dos aniversariantes do mês que circula pela repartição, quando finalmente consigo escapar descubro que não sei mais para onde ir. Volto para o prédio e deito no banco ao lado do banco do velho. Ele me conta que amanhã haverá bolo e refrigerante. Há uma nova pilha sobre  minha mesa. Durmo feliz.

 


quinta-feira, 17 de outubro de 2013






FAUNO
No labirinto destroçado
o Minotauro  entediado
estende seu sexo petrificado
sobre os mamilos machucados
de uma Ariadne sombria.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O Grito - Munch.
 
 
INSPIRAÇÃO ARTIFICIAL
Olhos acesos no álcool. O incêndio nos une e separa. Nada aprendi com o tempo, só com as cinzas, na dissolução das coisas íntimas. A fúria enovelada em ternura toquei os ombros dos eventos díspares e em meio ao tumulto deixei os gestos no escuro. Melhor que isso: bebi a esmo um copo negro de esquecimento.
Contador Borges.
Aquela vaca maldita se esticou na cadeira com os dedos enrolados nos cachos idênticos aos que eu imaginava que ele devia trazer entre as pernas e começou a dizer que o GRANDE problema é que meu poema era datado, datado, repetia enquanto cruzava as pernas abertas na tentativa vã de esconder o avesso de uma inexistente buceta.
E trazia mesmo, conforme descobri bem antes dela levar embora todos os clichês da minha vida, além do carro, da televisão, do cachorro e da minha libido, deixando na casa vazia apenas dois mudos canários amarelos e a típica sensação rancorosa de quem toma um pé nas vísceras a cada manifestação amigável de piedade.
            Foi nessa mesma manhã chuvosa que joguei fora todos meus livros de poesia, meus CDs de Bossa Nova, enfim, me livrei dessas merdas todas e tomei minhas últimas garrafas de vinho. Embriagado, entrei no chuveiro e escrevi no vapor dos azulejos: Meu pai sim é que era Macho e imaginei que engraçado seria se meu pai estivesse ali nu e tive uma crise de riso, mas a crise passou quando lembrei que se meu pai fosse vivo provavelmente me esbofetearia: Maricas! Gritaria, e por isso, decidi que nunca mais riria.
            Acordei de ressaca. Uma espécie de euforia tinha tomado conta de mim e a única coisa na qual conseguia me concentrar era em uma mancha preta que me fitava do teto e ao passar a mão pelo meu pau ereto, concluí perplexo, que além de estar com o pensamento rimado aquela era minha única amiga. Iniciei os movimentos, primeiro com cuidado, depois mais rápido, até conseguir acertá-la em cheio, minha porra respingou por todos os lados e antes de me levantar aliviado, tive certeza de que ela sorriu.
            Verifiquei feliz que o outro canário havia morrido, agora seríamos só eu e a mancha a me fitar do infinito. Fiz café e joguei um pouco para ela, como era bom ser casado com uma mancha fria. A mancha era calma, submissa e não reclamava da sujeira. O telefone tocou, o chefe da repartição queria saber quando eu voltaria. Dei uma resposta evasiva e tirei o telefone do gancho para evitar novas interrupções. Arrependido, fui até o lixo decidido a recuperar os livros de poesia, mas era tarde. Justo agora que tinha arrumado uma musa. Expliquei a situação para a mancha e pedi que ela não se chateasse, eu mesmo inventaria versos e cantaria. Peguei papel e caneta e me deitei na cama, decidido a compor os poemas mais belos de amor que ela já vira, mas, por mais que me esforçasse, os versos saíam sofríveis e a mancha ria, ria e ria.
            Aquilo virou uma obsessão: Eu acordava todos os dias às oito horas em ponto com o barulho do despertador, fazia sexo com a mancha, tomava banho e dividia o café com ela, depois me deitava na cama e passava o dia na tentativa inútil de rabiscar versos capazes de impressioná-la e enquanto a mancha indiferente só aumentava de tamanho eu encolhia, até que, prostrado na cama, sem conseguir elaborar uma única rima rica, constatei aterrorizado que não conseguia mais me levantar, a Mancha sorrateira tinha se espalhado por todas as paredes, pelo guarda-roupa e pela cama, tudo fedia e era impossível decifrar onde começava meu corpo e terminava o da mancha - tudo era começo e fim. Desesperado, ainda tentei gritar ao ouvir a campainha, mas a mancha me enfiou uma de suas infinitas tetas na boca e, embalado, me acalmei lentamente até adormecer.
 


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

 
Para Frida Kahlo
 
 


Gestação

Deito

minhas raízes

sobre úteros intermitentes

 e tatuo

a cobiça impossível

de uma pele esticada

para além do sangue.
 
 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Pinturas - Pollock


Entre meus pelos fluídos

refazer um silêncio desenhado

por seus dedos entranhados

na minha vulva noturna

 
 

         Escutar de dentro de um autorretrato

o grito assustado

de um fantasma que me espia

 

Esboçar com cimento armado

o perfil de um homem alado

que ao pousar na terra

vire barro

e me possua

terça-feira, 20 de agosto de 2013


 
 
 
 
DROMEDÁRIO

Para Caio Fernando Abreu.

                Sento no sofá e sinto uma pontada. Imagino que meu coração foi trocado por um ovo apunhalado, mas não recordo exatamente o momento da ocorrência.  Por isso desisto de dar queixa.  O Jeito é conviver com a faca que me cravaram no peito quando estava distraída. Deixar de beber, de fumar, sei lá, qualquer coisa que prolongue a vida, que aumente o ar. Na televisão houve mais um assassinato e o bandido fugiu.  Presto atenção, não é um assassinato comum, é uma chacina, mas ninguém liga para chacinas. Há um suspeito: mostram a foto. Leve semelhança com alguém que conheci. Será o bandido da faca? Não, não é possível. Assassinos profissionais não estilhaçam corações solitários, isso não dá dinheiro e é preciso técnica para fazer o transplante.

                Tento levantar, mas tenho uma protuberância no peito que me impede os movimentos, já desisti da polícia, todos desistiram, só as sirenes são incansáveis.  Imagino que se ficasse sentada ali a noite inteira talvez colocasse o ovo para  fora de alguma forma. É preciso chocar a dor. Não somos melhores que as galinhas. Alguém poderia telefonar e eu pediria ajuda. Tento alcançar o telefone em vão. Toda tentativa é inútil enquanto o ovo não sair. Penso na faca, atravessará meu esôfago ou meu ânus, e o que fizeram com meu coração? Deram aos homens? Aos Porcos?

                Passo a mão nas orelhas e percebo que estou sem brincos, não lembro de tê-los tirado, sinto frio e percebo que estou nua, tenho, além dos seios, outra pequena protuberância na barriga, acho engraçado: três montes vistos de cima, quatro com o caroço no seio esquerdo. Imagino um dromedário invertido e bem dotado, com quatro corcovas na minha barriga. Faz tempo que não me depilo. Tenho caroços na pele, pequeninos, sempre tive, mas fazia tempo que não os observava.  Pioraram com o tempo. Lamento os caroços e a falta de pêlos do dromedário, pois os pêlos só cobrem a região do Púbis e sinto frio. Recordo do passeio no Jardim Zoológico quando era criança. Ríamos do bafo dos camelos, não lembro a diferença exata entre um camelo e um dromedário e entro em crise de identidade. Tento imaginar outro bicho, mas não consigo, volto à galinha, não tomei banho e o cheiro é insuportável.

                Após o noticiário vem a novela e nenhuma mocinha parece um dromedário, concluo que não sou mais uma mocinha. Na novela todos estão felizes, ninguém teve o coração trocado por um ovo apunhalado enquanto atravessava uma avenida ou vagava numa praia, concluo que as novelas não são verossímeis.

                Propaganda de Campanha contra câncer no seio. O ovo pode sair com uma cirurgia, tenho dúvidas se continuarei viva após uma simples operação e por isso acendo outro cigarro despreocupada com a possibilidade de câncer no pulmão. O chão está imundo e a gata mia desesperada. Penso que alguém vai entrar e me tirar desse marasmo. Brinco com a morte. Na minha vida só restaram fantasmas e eles não virão me socorrer e se viessem seria estranho pois não consigo me mexer. Ficaria apática, o terror sobre as pupilas e só compreenderia quem olhasse nos meus olhos. Imagino que nesse momento alguém poderia aparecer e trazer um espelho, sempre quis ver a morte de perto. É uma atitude fria e calculista, me diz a mocinha da novela que de dromedário não tem nada, e pelo visto decidiu  me dar lição de moral (fantástico!). É fácil dizer isso quando não se é um dromedário com quatro corcovas entre os seios e a barriga, um punhado de pêlos na vagina e um ovo apunhalado no lugar do coração, respondo indignada e decido ignorar a TV.

                Tenho sede e penso em me arrastar até a cozinha, mudar de ambiente. A gata está desesperada, o chão imundo e continuo nua. Peso os prós e os contras. É preciso ter calma para morrer. Lamento não ser um dromedário, pois não teria esse problema, meu peito já é um deserto e a adaptação seria mais fácil. O trajeto é curto, mas tenho medo de deixar o ninho e matar a dor. É preciso chocar a dor, repito para mim mesma. O sofá é vermelho e se eu menstruar ninguém vai perceber. Lembro que isso é impossível agora. Vou publicar um anúncio nos Achados e Perdidos quando sair daqui:

                “Troca-se um ovo apunhalado por um coração novo”.

                A gata mia de novo e decido não levá-la comigo para a tumba, não sou Faraó. Seguro nas paredes e alcanço a cozinha. Piso em bitucas de cigarro. Encho um copo, bebo, encho outro, coloco no chão. Sento, meu pé está da cor da gata. Sinto ânsia de vômito. Inclino a cabeça. Fico feliz.

 

Do livro: Crônicas de Uma Tara Gentil. Vanessa Molnar.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013




Para Hilda Hilst

 

Mulher

Quando vai aprender que seu sexo é Terra?

Encosta o ouvido em seu  ventre de Ariadne

e escuta

a ausência do tempo febril

que perfura seu labirinto fechado

o eco

que rasga o vazio dos teus ossos

o silêncio

desse Dionísio que te fecunda.


sexta-feira, 21 de junho de 2013



PASSE LIVRE E A REVOLTA DO VINTÉM

Tenho acompanhado as notícias sobre o Movimento deflagrado pelo aumento da Passagem de ônibus que tomou proporções inesperadas em vários estados do país e reitero o que disse no Post anterior no qual refleti, brevemente, sobre os motivos que me levaram a participar da “Conferência Livre de Cultura” em Santo André, que foi, aliás, barbaramente desvirtuada sob a direção de um governo  autoritário e retrógrado.

Em que pese o alto custo de vida que arregimenta a simpatia da classe média, creio, como apontei anteriormente, que o que está em jogo é uma disputa acirrada pela implementação de valores neoconservadores que se refletem diretamente em alguns dos absurdos que foram denunciados nas manifestações, como a Cura Gay e a PEC 37, por exemplo, e, nesse sentido, é extremamente válida a ida do povo às ruas em uma demonstração clara de defesa de um Estado Laico e verdadeiramente democrático, através da discussão de outros mecanismos de participação que extrapolem a representação através do voto e que coloca em pauta questões importantes como a liberalização da maconha e do aborto.

A disseminação desse movimento através das redes sociais é um fenômeno novo que merece reflexão, já que atrai uma multiplicidade de pessoas insatisfeitas que tem objetivos bastante diversificados, além, é claro, de oportunistas de todo tipo. O campo político é uma arena que está sempre em disputa e o debate político-partidário está inserido nela. Há uma série de reformas importantíssimas que se arrastam há anos pelo Congresso, enquanto o senhor Feliciano e sua turma se divertem com o objetivo evidente de agradar seus fiéis seguidores e se reeleger.

Vi, na rede, que algumas pessoas se abalaram quando a FIESP exibiu a Bandeira Nacional, e não é à toa. Tenho a firme convicção de que a forma contemporânea de estruturação do trabalho é uma das principais responsáveis pelo acometimento, em massa, da população, por doenças como Depressão e Pânico, (além de contribuir com o trânsito, a mendicância e o alcoolismo, entre outros males) auxiliada pelo incentivo insano por um consumo abestalhado que faz com que grande parte da população viva muito mais de acordo com um sonho televisivo do que com sua realidade.

Estou lendo o último romance do JM Coetzee traduzido no Brasil: A Infância de Jesus e de imediato, embora de maneira superficial, consigo traçar um paralelo entre a falta de sentido do  mundo contemporâneo e essa insatisfação popular, só que, no romance, aparentemente, todos estão empregados e satisfeitos, embora essa satisfação pareça hipócrita e ainda haja uma discreta distinção de classes exposta na figura de Inês que mudou de uma residência de alto padrão para um apartamento popular, entre outras nuances que ainda pretendo destrinchar, pois estou em processo de leitura. Diferenças a parte, já que o romance parece ser uma critica feroz a uma sociedade falsamente massificada do tipo totalitarista (que medo), poder vivenciar essa diversidade que compõe o mundo nas ruas é algo extremamente saudável e nos faz pensar naqueles que serão os futuros pensadores no nosso país.  

Nossas escolas públicas estão com um déficit real de aproximadamente 30 por cento do seu corpo discente e cada vez há menos interesse por parte dos jovens em se tornarem educadores. Enquanto isso, as indústrias se aproveitam e vendem cursos de Pedagogia à distância de qualidade duvidosa com slogans do tipo: “Faça faculdade em dois anos por apenas R$200,00 mensais” e o resultado dessa política já é visível nas escolas onde alguns ainda resistem bravamente e tentam fazer a diferença.

Levando tudo isso em consideração e, dispensando as Teorias da Conspiração, penso que as idas da população às ruas com suas reivindicações pontuais e dispersas serviram para apontar os problemas estruturais que estão na base desse iceberg do qual temos que desviar com urgência se não quisermos afundar. Por fim, sendo otimista, embora também não saiba onde isso vai dar, gostaria de lembrar que nove anos após a última Revolta do Vintém a Monarquia cedeu lugar à República e talvez, daqui a uma década nós possamos estar em um lugar melhor, não vamos deixar que nos calem, pensamos, logo existimos, ou melhor, existimos porque pensamos. Fora Fascistas!!!

 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

CONFERÊNCIA LIVRE DE CULTURA

Impressões.

Após refletir sobre a importância da inserção do município (Santo André) no Sistema Nacional de Cultura, decidi participar da Conferência Livre que aconteceu ontem na UFABC e acredito que, como a maioria dos Produtores Culturais presentes, me senti bastante contemplada na fala do Dramaturgo Abreu quando ele mencionou a bipolaridade das Políticas Públicas de Cultura na nossa região e sua respectiva aversão à política moderna, fundada por Maquiavel, como um mero jogo de correlação de forças que tem como único objetivo ganhar e manter o poder, ressaltando a incompatibilidade natural desse viés com o trabalho criativo dos artistas, que é um trabalho fundamentado em valores humanos que estão em crise na nossa sociedade.
Eu, particularmente, tenho uma relação de amor e ódio com essa cidade a qual pertenço. Tive experiências significativas na minha formação/inserção que me foram propiciadas por  momentos positivos de gestão cultural que tive a sorte de vivenciar, seguidos de imensos vazios que transformaram a cidade em um deserto cultural, apesar, é claro, dos pequenos focos de  resistência que fazem parte da História Cultural da região.
Minha participação, ontem, em um módulo específico voltado para a reflexão das práticas educacionais e sua relação com a cultura me levou a refletir sobre minha própria trajetória. Afinal, não posso deixar de dizer que fui para a Conferência com uma vaga  sensação de inércia e até de culpa por uma persistência meia nonsense (Deixar meu filho de 3 anos no domingo tendo um trabalho de 40 horas semanais, não é fácil)  e se eu não morasse do lado da Universidade, provavelmente não teria ido. Participo da vida cultural dessa cidade há exatos 21 anos ( Há 21 como público/usuário e há dez como produtora de forma escassa). Aos dezesseis anos assumi a presidência do grêmio da minha escola (Pública),  posicionamento político humanista que (apesar das desilusões) até hoje me define, e exerci uma militância intensa no movimento estudantil que me levou a ser vice-presidente da UMES, me decepcionei com o Partido dos Trabalhadores e PC do B, ao qual fui filiada e tive a sorte (devido ao meu esforço) de estudar na USP, onde pude aprofundar meu parco conhecimento relativo as relações ou, como alguns preferem, Ciências Sociais, pelas quais fui apaixonada. (Confesso que com menos intensidade hoje). Depois de formada e de um longo divórcio com a cidade, resolvi abraçar a literatura como o principal alicerce de significação da minha existência.
Há mais uma série de fatos relevantes que poderia descrever, mas, no fundo, acho que decidi participar da conferência porque estou profundamente incomodada com essa fixação de valores não humanos que estão sendo disseminados como algo natural. Brincando com alguns amigos, que tive a sorte de reencontrar, nós chegamos a conclusão de que o mundo está passando por uma Revolução do Neo- Conservadorismo: Protestos contra os direitos das empregadas domésticas, mercantilização de tudo em grau cada vez mais elevado, sucateamento e falência total do Ensino Público, Feliciano e tantas aberrações.
Talvez eu ainda teime em resistir por causa do medo imenso que tenho ao pensar no mundo que meu filho herdará se não houver resistência a esse projeto de desumanização total que está sendo implementado e vendido de forma tão agressiva sob o matiz alegre do consumo fácil, padronizado e irresponsável.
Sei que cheguei em casa com a sensação de ter feito uma boa escolha, independentemente dos resultados da conferência (que foram positivos), alegre por ainda conseguir resisitir, por ter reencontrado os amigos (amigos de trajetória) e ver que não sou a única  que persiste, por ter conhecido novas pessoas e verificar que, apesar das naturais nuances, elas ainda sonham, por enxergar a possibilidade de novas perspectivas  e sobretudo por ter entendido que, afinal de contas, eu pertenço a esse lugar.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Estações


Fotografia de Edward Weston.
 
Não sei como dizer-te que cem ideias dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada.
Procurei o Deus-Menino nas lembranças embaraçadas do meu coração incinerado de vampira solar, revoltada com a permanência do inverno, enquanto fazia sangrar meus quadris ao som distante das Disritmias alteradas pela fúria do álcool e do gozo, mas foi nos nossos poemas e planos não concretizados que o encontrei com seus tristes olhos de natal. Penso se algum dia serei capaz de arrancar as ervas daninhas que lhe cravei nas entranhas para proteger (a todos nós) da nossa louca imaginação. Imagino que não.
Procurei o Deus menino para dizer que nós nunca sabemos as razões pelas quais somos amados e isso dói mais do que não saber por quais razões amamos. O amor, Deus menino, não pode ser explicado, (nem mesmo através de uma carta contemporânea enviada a algum jovem Werther). O amor é como um absinto, um risco, um mergulho infinito no nosso instinto, no primitivo, na carne, no avesso, na imaginação, o amor é sangue e improviso, o amor é tango. E acho que foi por isso, Deus Menino, que prolongamos, quase até a morte, nossa brincadeira de roleta russa, alternando balas de Tânatus e Eros no revólver imaginário que apontamos para nossos crânios, naquilo que você chamou de louca e premeditada peregrinação do destino por bares e hotéis baratos em busca de qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que era.
Mas não há fim sem começo, Deus Menino, como não há Deus sem menino e nem menino sem Deus. O amor é um dogma sem sentido, um axioma, uma mentira verdadeira cravada na pedra repleta de hera de outras eras e se eu pudesse, sozinha, abater Cronos e paralisar o tempo para perpetuar nossa luz de novembro com uma polaroide, se eu pudesse fazer com que as flores voltassem para a terra, as crianças para o ventre, a chuva para as nuvens e os pássaros para os ovos, eu o faria, mas os pássaros voam, assim como os ovos se quebram, a chuva cai e as crianças crescem enquanto as flores nascem, porque o amor é movimento, é uma busca desesperada e inútil por qualquer coisa capaz de colorir a vida ou de prolongar o ar.
Como vê Deus Menino, tenho pensado em você, tenho pensado nessa porta que não vai abrir nunca mais, tenho pensado na mistura involuntária que fizemos entre nossa própria essência e nossa voz, nessas reminiscências mornas que persistem em nossas línguas mortas, nessa tatuagem de cadeia que desenhamos com estilete na face irada de Psiquê, no lado escuro da lua, no nosso próprio lado B, nas nossas múltiplas despedidas, tenho pensado principalmente no não dito (É claro que te amei), mas agora é tarde e eu não direi, porque nós não somos piedosos, porque nós nunca seremos piedosos, porque você não precisa de piedade.

Estudo sobre o gozo

Gustav Klimt



 I

Cravar uma faca no crânio
para arrancar do ânus
gerânios amarelos
 
Cravar uma faca no ânus
Para tingir de vermelho
gerânios amarelos


Arrancar de dentro das cabeças
e plantar em inexistentes bucetas
cabelos  ensanguentados
que já foram
gerânios amarelos
 

II 


Mergulhar na sua pele noturna
para procurar  entre os nós do seu corpo
minúsculas cicatrizes e veias
que a natureza
se encarregou de apagar

 
beber do seu sêmen amargo
derramado dentro do arco
 do meu céu sombrio


para fazer emergir das entranhas
a umidade alucinada do desejo
percorrido pelo dedos humanos
de uma fêmea que segura um cigarro
aceso em eterno cio
 

III


Buscar entre seus dentes lúcidos
 substâncias líquidas
dispersas
pelas vielas obscuras
 das veias lubrificadas
pelas nuvens reticentes
 do amor

 
 Ressuscitar o sacrosilêncio
que  leva ao epicentro
circular
de ti

 
Esquartejar o pedaço do tempo
que reencontraste espantada
 na fresta ajoelhada
de um amor infantil

 
  contar os coágulos perdidos
no recôncavo fragilizado
pela memória da dor

 
decifrar
  na colisão das epidermes 
o gato enrolado
que trazemos cifrado
entre a planta dos  pés
e a  nuca febril.

 

IV

 
Traduzir sua língua imperfeita
que parte  desterrada  
movida pela diáspora
dos nossos quadris

 
Mensurar com um polígrafo
a distância que separa
sua pélvis
da lua

 
 Reinventar o fruto proibido
oferecido por um anjo decaído
que furtivo
transformou-nos em carne
quando explodiu o paraíso.

 
EU
Sou do mês de janeiro
a morte me habita
nasci da tempestade
começo pelo fim


Eu sou filha de Saturno
e lavo as impurezas lilases
das carnes lubrificadas
que restaram pelo caminho

 
Eu sou filha do tempo
 carrego um escudo por dentro
atravesso insensível os campos
germino em corpos noturnos.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Quinta Feira de Cinzas

 
Você sempre disse que o bom poeta era redondo, embora andasse quadrado, a tombar desajeitado pelos bares, com medo de quebrar os ossos, os copos ou os óculos que usava sem necessidade. Nunca acreditei que fosse morrer de Cirrose, nem mesmo quando éramos jovens e transávamos escondidos nos banheiros dos bares de São Paulo após várias garrafas de vinho. Achava, no máximo, que talvez você pudesse ser atropelado por algum motorista inexperiente, mas que sobreviveria e com seus dentes brancos e debochados me aguardaria em coma na cama de algum hospital público. Eu te visitaria, mas não te levaria nada, apenas arrancaria suas roupas e me deitaria ao lado do seu silêncio até que alguma enfermeira puritana notasse minha presença e me expulsasse aos berros, o que poderia demorar dias, meses ou anos.
 
Depois disso você acordaria e eu te acharia perdido em alguma cidadezinha do interior, a caçar bruxas pelos bares, enquanto seus textos eram exibidos no teatro local em corpos de jovens atores que eu despiria lentamente (todos) antes de partir ao seu encalço: Seu corpo flácido (pelo desuso) e sem tatuagens/ perdido em algum puteiro/eu me aproximaria com cuidado para que não me reconhecesse/seu membro rijo no meio do meu devaneio, o gozo em troca de dinheiro.
 
Após alguns meses, nos encontraríamos em um barco de borracha em meio a uma enchente, como em um livro de Hemingway (você já recuperado). Reconhecer-nos-íamos, embora, talvez, você tivesse cortado os cabelos e a barba, mas fingiríamos que não, (ignoraríamos as cicatrizes que eu poderia trazer nos pulsos nessa ocasião) e nos divertiríamos fazendo leituras de nossos poemas para dondocas que, deslumbradas, tentariam nos apertar contra seus peitos carentes, dos quais fugiríamos assim que as águas baixassem, para não morrermos sufocados por tanta solidão.
 
E no carnaval seguinte você sairia fantasiado em um grande bloco (contrariando todos os seus princípios) com um pequeno tapa sexo entre as pernas e uma máscara antiga na mão e ajoelhado diante das nádegas de uma jovem Medeia, gritaria palavras apaixonadas que se dissipariam com jatos de esperma, no meio da multidão e só eu te compreenderia e só eu te escutaria e só eu lhe pediria perdão e você me ignoraria e seguiria triunfante fora desse caixão.