quarta-feira, 23 de outubro de 2013




A PRISÃO

É tudo verdade, afirmo sem titubear para a jovem assistente social que me olha com a raiva típica que os funcionários públicos adquirem das pessoas com as quais tem que lidar ao longo das suas monótonas carreiras. Conto minha história novamente, mas ela já não me escuta, então agradeço e digo que é melhor eu ir andando, meu filho deve estar preocupado, justifico, e ela, se sentindo profundamente ferida pela minha ousadia em sair sem pedir sua permissão me manda esperar e me entrega uma quantidade absurda de formulários e uma caneta mastigada. Ignoro o sorriso sombrio que lhe escapa pelo canto da boca pendurado em um pequeno fio de saliva que ela aspira com avidez e abaixo a cabeça fingindo concentração.

Avisto o sol pela janela e sinto que ela quer se vingar, como se eu fosse culpada pelo fato de ela estar envelhecendo rapidamente cercada por uma pilha interminável de papéis e leis inúteis e para evitar atritos começo a preenchê-los vagarosamente, como se estivesse segurando um lápis pela primeira vez e diante da minha aparente submissão a funcionária tranquilizada se afasta. Olho para a porta esperançosa e para disfarçar peço um cigarro para um velho que tem um maço amassado entre as mãos, ele cede mudo ao meu pedido e murmura algo que entendo como falta de fogo, nada inesperado, mas quando me levanto, o guarda aponta para a imagem de um cigarro cortado ao meio, concordo e aponto para a porta, mas ele repete o gesto e em seguida aponta para minha pilha de papéis que alguém colocou em ordem alfabética em cima de uma pequena mesa que eu ainda não tinha visto e que está encostada na parede.
Sou obrigada a sentar de costas para a janela e olho com raiva para o velho, afinal não havia mais ninguém ali. Agora, tudo que vejo é um relógio antigo que gira lento sobre  minha cabeça e uma tela em branco que pertence a um computador quebrado que exibe a mensagem Sem Sistema.  Sem saída decido começar a preencher os formulários. Noto que são muito estranhos, alguns são repetidos e além das informações comuns, como nome, filiação e endereço, há várias perguntas inusitadas, há, por exemplo, uma sobre animais de estimação: querem saber quantos cachorros tive e quais são as datas de nascimento e morte deles e se eu chorei em alguma dessas ocasiões, há outra sobre namorados pedindo a elaboração de uma lista em ordem alfabética com o nome de todas as pessoas com as quais me relacionei e a discriminação do grau de afetividade que senti por cada um em uma escala que vai de zero a dez. Irritada decido ir embora, mas quando giro a cadeira vejo que trancaram a porta e só o velho permanece  sentado com o mesmo maço entre as mãos. Me aproximo e pergunto se ele conhece o responsável pela repartição. Ele aponta para uma sala de reunião e me informa que é preciso colocar o nome em um livro preto localizado no balcão e aguardar na mesa para ser atendido. Fico preocupada quando noto que no outro canto da sala há outra mesa repleta de papéis, curiosa, tento me aproximar, mas quando estou quase tocando nela o velho surge na minha frente e me empurra zangado. Observo que o velho parece um duende sujo e decido esperar mais um pouco.

Sinto fome e sacudo uma garrafa de café que encontro sobre uma prateleira na qual bato a cabeça ao tentar me levantar rapidamente por causa de um barulho de cadeiras arrastadas que percebo dolorida ser o vento. Anoiteceu e o velho ronca sob uma pilha de jornais. O café está frio. Viro um copo seguido de três bolachas murchas e uma xícara de água e começo a inventar respostas com o intuito de responder aos formulários. Quando acordo a repartição está cheia. Avisto feliz a Assistente Social que me atendeu e corro até ela com meus papéis preenchidos. Ela folheia o calhamaço com ar de superioridade e me entrega três carimbos e uma almofada. Retorno envergonhada para minha mesa e continuo meu trabalho. Termino na hora do almoço, o velho me conduz pelo braço até a cozinha e coloca na minha frente uma marmita que nunca vi, como estou com fome engulo o arroz e feijão, agradeço e explico que tenho que ir, mas uma senhora alta e zangada diz que embora eu tenha concluído meu trabalho o expediente só termina às 18:00h. Passo a tarde rabiscando papéis e mastigando clipes e, para me distrair, incluo meu nome na lista dos aniversariantes do mês que circula pela repartição, quando finalmente consigo escapar descubro que não sei mais para onde ir. Volto para o prédio e deito no banco ao lado do banco do velho. Ele me conta que amanhã haverá bolo e refrigerante. Há uma nova pilha sobre  minha mesa. Durmo feliz.

 


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