segunda-feira, 30 de novembro de 2015


RAYUELA

Eu te via surgindo rapidamente de dentro das minhas vísceras
Suas unhas plúmbeas escondidas entre as algas vermelhas dos meus cabelos
e um hálito de hortelã evaporando com o vapor barato dos azulejos

Noite de ventres alaranjados escorrendo entre meus dedos úmidos
Seu sexo estendido roxo como uma fruta madura na palma das minhas mãos.
Estações alternadas entre dias e noites cada vez mais quentes.
Um silêncio ventando manso pelo casaco roto pendurado no varal.

E eu te achava lindo fantasiado de marinheiro no carnaval de 76
listras azuis recortadas sobre um pedaço do mar encardido no tempo
tatuagens coloridas desenhadas sobre a pele morena dos nossos hematomas
suas mãos de pássaro desfazendo os nós apertados entre a fumaça dos meus pelos.

E nós saíamos desesperados pelas veredas e vielas do esquecimento
Onde Ofélias, Emílias e Diadorins seguiam vagarosas os passos dos nossos beijos
Escrevíamos poemas e brindávamos loucos em parques noturnos com estátuas lentas
Embriagados tirávamos nossos coturnos e desdobrávamos nossos sonhos
em   dedos deslocados com agilidade pela penugem dos meus seios.

Tempo das estrelas de onde a noite se precipita
Seu corpo retirado do tempo de dentro da minha lembrança
A valsa lenta dos corpos ressurgidos na cópula das nossas danças
Sua imagem de anjo negro guardada na memória de um guardanapo escuro.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015


Fotografia de Edward Weston.

PUTA

Sou um martelo, uma lâmina
uma corda
Instrumento suicida
Puta e santa
Cadela líquida
Agulha de cristal.

Sou uma granada, uma chaga
uma morta
Instrumento para a descida
Puta e santa
Sangue e líquen
Pedra enterrada no quintal.

Sou uma flor, um poema
uma açucena
Instrumento para a subida
Puta e santa
Punhal e carabina
e trago dentro da vagina
pássaros de sal.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Romanceiro Gitano

Que canto há de perfurar
minha pele madura
as reminiscências dos mortos,
Mitos, recitais?
Com a voz calada da lua
sofrem ciganos perdidos

entre os madrigais.

Que canto há de abrandar
minha armadura
as dormências que trago dos vultos,
Tangos, carnavais?
de dentro dos poemas corpos 
gritam  sereias arrastadas
por um canto circular.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015



SAPATINHOS VERMELHOS

Dançaras, e era o que ela fazia. Dançava calmamente até sentir seu sapato se transformar em um pesado coturno.

Vem Natan, senta aqui que já é quase meia noite e eu estou cansada de tanto tédio, as luzes de natal já enfeitam as ruas e finalmente posso calçar meus sapatos vermelhos diante do espelho enferrujado, já é tempo de esquecer as notícias da televisão, e enquanto a música toca rodopiar surda às salivas e suores alcoólicos dos homens que trago colados junto a meu rosto de batom apagado e que dançam em ritmos alternados, cada vez mais ousados, rápidos e sombrios dentro de mim.
  Vem Natan, e traz uma taça de vinho gelado para a gente tomar entre os intervalos desse baile imaginário, descansa seus pés determinados dentro dessa robusta bacia que eu coloquei no canto do salão e me deixe contemplar essas tatuagens de mariposas azuladas e esses poemas alados que você tem nos braços e que te mantém sempre longe do tumulto e da violência da multidão.  
 Vem e me deixa contemplar a delicadeza das suas veias, tocá-las, há sangue nos meus pés e esse sangue é da cor do sexo das mulheres na hora do parto, derrama vinho sobre eles, o vinho é a bebida do esquecimento e é preciso sempre esquecer Natan, das tâmaras que colhíamos dos nossos ventres, dos nossos passeios observando os gatos pelos telhados, do esforço do cavalo para ser cão, é preciso distinguir o verossímil do inventado e dormir com mil marinheiros para conseguir   arrancar a poesia da lama que escorre no chão.
Chegou o tempo das maçãs envernizadas, das intermináveis filas dos mercados, de recolher as folhas secas das ruas, chegou o tempo, aperta meus pés inchados para que eles voltem a se mexer pelo salão, passa a língua em câmera lenta pelos degraus das minhas vértebras e enquanto o silêncio ainda arranha o tédio dos corrimões e vamos nos trancar nus como os capricórnios dentro dos nossos calabouços para observarmos a manhã nascer delicada enquanto o mundo termina ao som de um romanceiro gitano repleto de fúria: tire meus sapatos vermelhos e apague a luz Natan, pegue seu bandolim e venha ver as constelações.