terça-feira, 28 de julho de 2015


ANÁLISE DA NARRATIVA “O PÁSSARO TRANSPARENTE” DE OSMAN LINS.

            Indefinido, é assim que começa a descrição do personagem do primeiro texto do livro Nove, novena de Osman Lins que trás na capa o subtítulo: narrativas, deixando clara sua adesão à estética do modernismo que tem como uma das suas características o enfraquecimento das fronteiras tradicionais, não apenas entre os gêneros, mas entre as linguagens artísticas, conforme depreendemos do texto aqui analisado, que alterna cenas semelhantes a quadros, com a consciência de um protagonista cuja interioridade é construída em conexão direta com as paisagens nas quais se passam os acontecimentos.
            Oscilando entre o passado e o presente, o conto narra de forma não linear, através de uma descrição semelhante à montagem e ao corte cinematográfico, que se alterna com as reminiscências típicas da memória, a história de um homem bem sucedido que amargurado, recorda os sonhos vividos na juventude.
            No ensaio Reflexões sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld[1] levanta a hipótese de que, no campo das artes ocorreu um fenômeno que ele intitula de “desrealização”, que se observa inicialmente na pintura, e que está relacionado ao fato de a arte ter deixado de ser mimética. Segundo ele, tal fenômeno também pode ser observado no romance moderno e se manifesta principalmente na fusão entre passado, presente e futuro. Essa abolição do tempo cronológico abala a perspectiva nítida do romance realista que deixa de apresentar o retrato de indivíduos íntegros. Apesar de ROSENFELD estar se referindo ao romance, suas observações podem ser aplicadas ao presente texto, já que Nove, novena marca o início de uma fase experimental do autor na qual as questões relativas a uma definição clara de gênero perde a centralidade, como podemos notar no trecho da entrevista abaixo transcrito:
             O Fiel e a Pedra começou como novela e depois virou um romance. Como e quando você determina o gênero? Poderia definir o que é o conto, a novela e o romance? É razoável persistir o gênero literário na literatura contemporânea?
 Devemos conceder maior amplitude à pergunta que leva a essa controvertida questão de gêneros, indagando, por exemplo, o que se entende por ficção. Que devemos entender por ficção? Acho ser a fixação, através da palavra escrita, e com ênfase na aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão pessoal do mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que no entanto se confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos habitamos. A designação do gênero me parece acadêmica, não importa. E as existentes nem sempre satisfazem. Designei os trabalhos de Nove, Novena, por exemplo, como narrativas[2].
No posfácio de Nove, novena: “Palavra Feita Vida[3], José Paulo Paes se refere à  “Um pássaro transparente” como um conto, já que: ele envolve um único conflito dramático para cuja resolução se encaminha de pronto o fio fabular, embora de forma não linear, no entanto, nesse mesmo texto, ele observa que: essa montagem descontínua de flagrantes temporais, que dinamizam a forma do conto, ameaçam romper os limites que o separam da novela.
Ainda em relação à questão do gênero, é interessante pensarmos nas reflexões de Júlio Cortázar[4] quando ele aproxima o conto da poesia, nesse aspecto, apesar das diferenças encontradas entre os autores, há, nas narrativas de Osman Lins, uma aproximação entre esses gêneros, na medida em que a contemplação ocupa um importante papel refletido nas cenas descritivas, que se assemelham literalmente a quadros. Ao contrário do que ocorre em um conto realista, em “O Pássaro Transparente” a descrição dissolve a ação e a subjetividade que emerge não é propriamente a de um eu individualizado.
Nesse sentido, é interessante pensar na relação que Adorno[5] estabelece entre lírica e sociedade, quando ele diz que a universalidade do teor lírico é essencialmente social: “Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade”. E é essa voz que ouvimos reverberar nessa bela narrativa de Osman Lins.
             A narrativa começa com a descrição de um menino de oito anos que, ao fitar um gato preto e branco, estabelece com ele uma relação de contraponto pautada na superioridade da sua espécie e na sua durabilidade temporal em relação ao felino, e nessa primeira descrição já encontramos o que NITRINI[6] chamou de “Poética de tensões”, marca registrada da literatura de Osman Lins de Nove, novena à Rainha dos cárceres da Grécia:
Você me olha de cima, porque está no muro. Mas vou ser um homem, vou viver cem anos. Crescer. E quando for mais alto que portas e telhados, onde estarás? Hein? Sentado onde? Olho para você e já vejo a ossada brilhando no monturo. Andas mansinho, és um silêncio andando. Eu, quando crescer, meu bater de calcanhar no chão será como trovões”[7].
            Mas apesar dessa aparente altivez, retratada através da oposição entre barulho e silêncio, o menino já traz uma tristeza escondida, fruto de uma resignação que vai sendo desvendada ao longo da narrativa, na qual descobrimos que a capacidade de permanência do personagem não está relacionada apenas a uma questão temporal, mas a continuidade de uma condição social que ele herda do pai, um senhor de engenho de um pequeno vilarejo localizado em algum lugar, provavelmente no interior do nordeste reiterando a hipótese de uma representação arquetípica que permeia a obra do autor, e ao menino de rosto brilhante e cabelo fino e claro, se contrapõe: a face de um homem exausto, emoldurada pela janela do trem[8] que se dirige ao velório do pai, imagem que antecipa a transformação da criança sonhadora em um homem cruel:
Seus cabelos escuros começam a embranquecer, a roupa de casimira negra (luto do pai) é demasiado frouxa, demasiado cômoda, as meias brancas enrugam-se nos tornozelos, os sapatos não brilham...”[9].
             Após a lembrança das cartas rasgadas no trem pelo protagonista, vai se desenhando aos poucos a tentativa de resistência de libertação de uma herança social imposta empreendida, sem sucesso, pelo personagem durante sua juventude e, na contraposição que ele estabelece, dessa vez com a paisagem, que ao contrário dele, mudou pouco, encontramos novamente aquela resignação apontada no começo da história e que está refletida na imobilidade: ele mudou por fora, envelheceu, mas por dentro continua o mesmo: “Este engenho, como os outros que vejo no caminho, parece eterno com seu triste bueiro, seus telhados velhos e o copiar sombrio[10] e, além disso, mesmo que ele pudesse voltar no tempo, de nada adiantaria: “A juventude do homem, felizmente não é como a folhagem dessas árvores. Se fosse, se eu voltasse a ser jovem, cometeria os mesmos erros, talvez outros maiores[11].
            A aceitação do papel social que lhe foi atribuído fica ainda mais evidente no momento descritivo de contemplação do rosto do pai morto. Nesse quadro literalmente comparado a um “estudo quase superposto” fica evidente o papel de continuador que o personagem assume em relação ao pai:
Dois rostos, um derrisório e solene de perfil no travesseiro alto, mandíbula presa num lenço, outro de frente, mordaz, fixando o morto, ambos imóveis. O perfil – em vida não era assim: nítido – dá uma impressão de juventude, não obstante o bigode cor de prata suja; o contemplador, pelo contrário, está envelhecido, e assim os dois parecem estudos quase superpostos – um em repouso, outro contraído – do mesmo rosto.[12]
            Toda a descrição relativa à casa que ele herdou e na qual vive com a mulher designada pelo pai, Eudóxia, única personagem nomeada na história, nome grego e que tem como significado: de boa reputação, é apresentada como algo imóvel, amarelo, pastoso. O espaço doméstico é opressivo, escuro. Já as lembranças relativas à sua ex-namorada ocorrem todas em locais de movimento: O primeiro lugar no qual ele se lembra dela é no trem, quando está empreendendo uma viagem simbólica para o velório do pai, e o encontro com ela, única parte da história que contém diálogos e que está marcada, portanto, por uma fala externa ao personagem, se dá no cais, onde ele costuma observar os paquetes e lembrar dos sonhos de juventude que  não concretizou e que ela está prestes a realizar:
                                      “- Aí está”. Depois de tantos anos de espera, vou atravessá-lo.
- Tenho visto seu nome nos jornais. Li que você obtivera uma bolsa na Espanha. Fiquei contente, disse comigo: “Ora veja, quem podia imaginar que ela ia se tornar uma artista famosa”[13].
             Eudóxia é o oposto da ex- namorada do protagonista, que é a representação luminosa do próprio ato criativo, reiterando essas oposições de luzes e vozes que acompanham todo o texto:
                                      “Tinha um dente de ouro. A pele é menos brilhante; não os olhos. Mais bonito o cabelo, os seios menores, mais fina a cintura. Atraente, com qualquer coisa de intenso e de maduro em seu vestido azul, contra a parede ocre e o negro telhado do armazém. Eudóxia é mais jovem do que ela. E parece mais velha, em seus vestidos frouxos, em seu jeito ausente e sorrateiro, disfarçando a perene atitude de suspeita...”[14]  
            Sintomaticamente a ex-namorada está indo para Granada e ele lhe pede que ela lhe envie um cartão postal de ciganos, um povo nômade e que não costuma ter boa reputação, ao qual ela própria é relacionada na menção ao seu dente de ouro, que costuma ser uma das características atribuídas a eles e que brilha.
            Em seguida ele recorda de uma fala dela que, apesar de estar no presente, remete a um diálogo ocorrido no passado, no qual ela discorre a respeito da mesquinhez daquela cidade em relação aos grandes centros e alude a possibilidade de sair, junto com ele, daquele lugar, fazer uma viagem, atravessar o mar, e na continuidade dessa lembrança da juventude transparece a mesquinhez do personagem, que novamente se assemelha à paisagem, ele é tão mesquinho quanto a cidade:
Havemos. Ela diz havemos. Eu, não tu, farei essa viagem. Não sabes o que disse um poeta, desiludindo a sua namorada, decerto parecida contigo e que imaginava continuar ligada para sempre a ele? Eu sou Goethe!”[15].
            E na sequencia da comparação que ele faz dele mesmo com Goethe, comparação que nos fornece uma hipótese de investigação relativa ao romantismo, já que diferentemente do que costuma ocorrer nesses romances, o protagonista não conseguiu se livrar do seu destino e viver as aventuras típicas de um herói, temos uma inversão irônica refletida no seu desejo de voltar para a cidade e encontrar a ex-namorada casada com algum comerciante:
Mas sei que um dia voltarei aqui rodeado de glória. Teu marido será empregado do comércio, ou talvez escrevente no cartório, terás um lar e filhos; mas teu orgulho maior, a ninguém confessado, virá de seres o que és agora: a testemunha de minha adolescência. Eu sou Goethe.”[16]
A descrição da cena do seu casamento com Eudóxia, cujo significado é anunciado pela má caligrafia da palavra amor escrita no bolo e que, não por acaso, é a única palavra que aparece no texto em letras maiúsculas, reforça a hipótese de que a narrativa em questão não está tratando de uma singularidade, mas de uma questão universal, no caso, do amor romântico. Amor, aliás, é a única palavra referida como tal dentro do texto:
Se não nos une o amor daqui ausente - , como poderia ser eterno? E não perca seu tempo em busca de símbolos. Para nós, só um é válido, esses bonecos ocos, ostentando uma palavra grave (a palavra, a palavra!) num coração de papel. É possível que nem chegue a desembaraçar-se dos presentes hoje recebidos.”[17]
            Além disso, enquanto a ex-namorada é associada a imagem de um pássaro transparente, cujos olhos ainda brilham, signo da liberdade que aponta para o exterior, Eudóxia é associada a imagem de um poço, voltada de forma cada vez mais implacável para si mesma:
Essas palavras dele, sei por onde se escoam. Não fogem pelas portas, nem pelas janelas; desparecem a meu lado, para sempre, sugadas por este poço ao qual liguei minha vida e de quem sinto o ossudo cotovelo”.[18] 
            Após a lembrança do seu casamento ele espera seus empregados saírem para procurar entre seus papeis os poemas que ele ainda preserva, e dos quais se lembrou graças à notícia que leu no jornal a respeito dos quadros da ex-namorada e que provavelmente é o fato  que o levará ao encontro com ela antes da sua partida, e no final do texto, apesar da fragmentação propiciada pela memória e pelos enfoques narrativos semelhantes a imagens cinematográficas, o autor consegue construir uma narrativa que possui unidade.
            Ao analisar esse conto em comparação com o conto “Os Gestos”, Graciela Cariello[19] observa que os narradores osmanianos, ubíquos e aperspectívicos, constroem o espaço em procura da totalidade cósmica, mas, enquanto em “Os Gestos”, o personagem passa por uma espécie de epifania através da visão, ao vislumbrar a transformação da sua filha em uma mulher, no final do Pássaro Transparente a imagem da ex-namorada pintora enquanto: o pássaro que conseguiu quebrar a casca e descobrir um modo criador e livre de existir[20] se contrapõe a dele, cujas mãos se fecharam cada vez mais até deixarem de lhe pertencer, o que aponta para uma defesa simbólica da arte como um elemento libertador.  

BIBLIOGRAFIA
LINS, Osman. Nove, novena. Narrativas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LINS, Osman. Os Gestos. São Paulo: Moderna, 1994.
ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2006.
AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2013.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2013.
Tessitura, Interações, Convergências. Organização Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec: 2011.
 REVISTA VIVER E ESCREVER.  Entrevista concedida a Edla Van Steen – Porto Alegre.Vol 1, Editora L&PM, 1981.




[1] ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto I. São Paulo, Perspectiva, 1996.
[2] REVISTA VIVER E ESCREVER.  Entrevista concedida a Edla Van Steen – Porto Alegre.Vol 1, Editora L&PM, 1981.
[3] PAES, José Paulo. Palavra feito vida. In: Nove, novena. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
[4] CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Perspectiva, São Paulo, 2013.
[5] ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I. Editora 34: São Paulo, 2006.
[6] NITRINI, Sandra (Org.). Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo: Hucitec: Abralic, 2011.
[7] Osman Lins. O Pássaro transparente, In: Nove, novena. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 9.
[8] LINS, Ibidem, 1999, p. 9.
[9] LINS, Ibidem, 1999, p. 9.
[10]LINS, Ibidem, 1999, p.9.
[11] LINS, Ibidem, 1999, p. 10.
[12] LINS, Ibidem, 1999, p. 12.
[13] LINS, Ibidem, 1999, p. 13.
[14] LINS, Ibidem, 1999, p. 14.
[15] LINS, Ibidem, 1999, p. 16.
[16] LINS. Ibidem, 1999, p. 16.
[17] LINS, Ibidem, 1999, p. 18.
[18] LINS, Ibidem, 1999, p. 17.
[19] GRACIELA, Cariello. Iluminações e vozes. (Osman Lins, Juan Saer, Jorge Luis Borges). In: Tessituras, Interações e Convergências. Org. NITRINI, Sandra. São Paulo: Hucitec, Abralic, 2011.
[20] LINS, Ibidem, 1999, p. 19.