sexta-feira, 29 de maio de 2015

Genesis - Sebastião Salgado.


DELICADEZA

O rastro de seu corpo já foi vida
e eu inventava desejos
 apagava vestígios
costurava feridas.

E saíamos com receio das cavernas 
para perambularmos
em ruas destecidas
por Penélopes míticas.

O rastro de seu corpo agora é verbo
e eu retorço na memória
sangue, urina e dejetos
e estrangulo noturna
nosso corpo ao cubo
copulado até a medula dos nossos versos.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Chirico - Ettore e Andromaca (1917)
 
Carta ao Deus Menino 2 –  SÉRIE AUTOFICÇÃO.


Estamos vestidos de alfabeto,
Não sabemos nosso nome.
Cavalos brancos vermelhos
Mastigam o mundo:
Olhai a sombra da terra,
Uma enorme guilhotina.

Galopa fantasma
Vida contra vida.

Murilo Mendes. ( As Metamorfoses)

 O MURO

Mergulhei as palavras na chuva para ver se encolhidas pela dor eu conseguia guardá-las, como guardei os dentes da infância, ou a dentadura partida do meu avô, mas dentro de corações solitários é tudo apertado e viscoso, como dentro das vaginas, e por mais que me esforçasse, as palavras se esvaíam com a saliva  e eu não conseguia apanhá-las para amarrá-las ao inútil fio de Ariadne que eu trazia. Não, isso não é um sonho, é apenas a constatação muda de que nós sempre estaremos aqui unidos e separados pela fantasia desse muro.

Lembrei de todos os muros que marcaram minha vida, do falecido muro de Berlim a muralha da China, e me vi - pulando - de forma repentina os muros das casas da minha rua de infância. Quando eu era criança nenhum muro me impedia, tenho as cicatrizes vivas pelo corpo como prova da minha habilidade e penso sempre que se não tivéssemos sido crianças pobres a vagar esquecidas por telhados roxos, como pequenos gatos, teríamos ido juntos ver os restos dos famosos muros que caíram mundo afora, ao invés de gastarmos nosso tempo construindo esses invisíveis muros (interiores), cercados por livros, cafés, sucos e jabuticabas, para nos protegermos da dor da queda do muro do mundo.

Eu sempre quis embarcar em um navio que me levasse até a Antártica onde poderia comparar a pequenez de nossa vida com a eternidade das baleias ou com a poesia dos icebergs, mas medos imaginários e falta de coturnos apropriados me impediram de caminhar até a Islândia, (eu, que sempre sonhei com um casaco rosso e uma taça de vinho) onde poderia ficar isolada do tempo e das lembranças do meu corpo que servia de trampolim rumo a uma memória antiga como se fosse possível adiar a morte que escorria em forma de sêmen sobre as veias desoladas do meu pé e que me lembravam um poema antigo e eu não senti nada além de uma tristeza semelhante à tristeza que senti ao reconhecer seu corpo descarnado, finalmente desenterrado de dentro de mim.

Há mil histórias contadas a respeito de improváveis heróis postados em improváveis muros a espera de inexistentes bárbaros. Acho que trocamos as últimas cartas escritas pela humanidade, quando ainda acreditávamos que a loucura do amor seria responsável pela diluição das regras e das fronteiras e que nosso jogo de amarelinha nunca nos levaria nem para o sul nem ao inferno silencioso dos subúrbios ou de nós mesmos.

Tínhamos línguas afiadas e penugens de anjo e a ilusória eternidade dos nossos gozos se alternava entre a tristeza dos autorretratos de Frida Kahlo e o entusiasmo das canções de guerra feitas para alegrarem os feridos e seus espermas desapontados em noites vazias ao observarem os corpos dos seus companheiros voltarem ao pó, antes que os demônios acordassem e os pássaros viessem beber ao sol e devorar os mortos, enquanto eles sobreviviam.
 
Nós estávamos doentes, vivíamos fora do tempo, possuídos pelas ideias fixas dos fantasmas, das dimensões e dos duplos, procurávamos nos mapas a rua de mão única da infância. Em breve partiríamos, sabíamos que nossos corpos se repartiriam, e mesmo assim não conseguíamos parar de mover nossos quadris, apesar de sabermos que da nossa união não surgiria nada de concreto além das cartas e dos textos publicados nos jornais manchados de sangue de Madrid. Tínhamos os mesmos defeitos. Nossos  antigos amantes tinham filhos com nomes de Stalin, Mussolini, Idi Amin Dada, Salazar, Pinochet, entre outras excentricidades, coincidências com as quais nos espantávamos, enquanto você desembaraçava meus cabelos entre copos de água e partidas de xadrez. Éramos gêmeos na agonia.

Quando enfim nos reencontramos, houve uma confabulação interna que inutilizou as palavras e nenhuma aventura sentimental pôde ser contada. Naquela tarde preguiçosa apenas as pombas brancas arrulhavam nos telhados em sinal de paz e comentamos sobre as mãos cortadas de Che Guevara em um recanto distante da Bolívia enquanto segurávamos com o polegar e o dedo indicador nossas xícaras burguesas de café amargo. Minha cabeça era uma rosa gigante que se desfolhava na balada silenciosa dos seus lábios. Não caminharias nunca mais para meus seios, nem se aninharia feito uma menina entre minhas pernas. Nunca mais me seria permitido triturar com a ponta dos dedos seus ossos escondidos. Eu tinha sido um menino mau, curioso e desprovido de sonhos bailarinos.  Disso, nós dois sabíamos.

- Nerval se enforcou com o manuscrito de Aurélia no bolso. Eu disse para puxar assunto.
- Paris não é uma festa e a força da vida não nos leva mais pela mão. Ele comentou sombrio enquanto dobrava seu agasalho e retirava da bolsa um exemplar de O Labirinto da Solidão.

Os sonhos das nossas infâncias violentas desenrolaram-se da boca das sereias e soubemos que o irreal nunca mais se levantaria em aurora e levaria nossos corpos de volta aos chuveiros do paraíso, o tempo havia nos mastigado feito vidro, até a água agora nos feria e nós havíamos nos rendido como soldados que retornam mudos e cheios de cicatrizes e tatuagens dos campos de batalha e se casam com a primeira dama que avistam. Agora eu era uma mulher sentada em volta de um círculo de fogo folheando, como as outras, um livro de gravuras, e, de dentro dele, um menino me sorria.

Na nossa última viagem ao fim da noite você me disse que as fogueiras da inquisição foram transformadas em um estado de espírito, e que nas suas andanças você havia colocado um cadeado na Pont de Arts com a finalidade de deixar guardado ali o nosso amor e eu te contei que ainda adorava a sombra gelada dos homens encantados que se fazem presentes pela pele das palavras e que não acreditava nos pecados das histórias bíblicas e nem na maldade das bruxas. Você não respondeu. Nos embriagamos de néctar e em vão procuramos no reflexo perdido dos nossos copos nossos corpos dionisíacos, carregávamos, como escudo, nossos livros,  acendemos velas e incensos para os deuses da poesia, rimos, mas isso não foi suficiente para impedir a verdade pressentida em um beijo de despedida e no verão seguinte havíamos fugido e mudado de corpos e de vida.  

Te escrevo novamente uma carta, mas quero que saiba que essa carta não é para você, porque você, assim como esses muros, e talvez como essa carta, não existe, o que existe são apenas os ruídos que percorrem lentos as ruínas dessa antiga construção que por falta de necessidade e uso ruiu. Sim, talvez você se espante ao descobrir assustado que, depois de tanto trabalho, algo roeu nossos muros, e, sentado no meio fio ao lado de um velho rato, descubra que isso não tem a menor importância para nossa arqueologia, porque, exceto em um livro de Kafka, ou em algum labirinto perdido da literatura, ninguém passaria a vida plantado como uma sombra ao lado de um escombro escavado cujo eco repete sempre a palavra muro.


 
VM