Retrato
Meu
eu, que cisma sentado, esperando o trem, o auto na garagem, o retrato na mesa,
o copo no chão, o celular na gaveta, o bom senso em qualquer lugar.
Meu
eu, do cão que late e morde ou do gato que acaricia e escapa, do riso
zombeteiro, porque os bichos não choram.
Meu
eu, entre livros e sites, entre sapos e homens, entre diásporas e sonetos,
entre a cidade e o gueto.
Meu
eu, histórico e retórico, pragmático e feiticeiro, escondido entre o culto
ancestral e o futuro incerto.
Meu
eu, que se alterna, entre ressacas e insônias, cafés e cigarros, o fim do mundo
e o fim do mês.
Meu
eu, que entre o sonho e o sofrimento inventado, canta no chuveiro (como todo
mundo) mesmo que meu outro eu não goste.
Meu
eu, que insiste em passar do erudito ao kitsch, sem a menor explicação.
Meu
eu, que já amou, cafajestes e bichas, e que, por isso mesmo, insiste no fato
verídico de que nunca amou ninguém.
Meu
eu, que não crê nos textos redondos, nas frases feitas, nas bocas tortas das senhoras
católicas que recitam Shakespeare como uma oração.
Meu eu, que
não aceita pronomes de tratamento, apesar da verdade dos espelhos e da
cordialidade aparente das empregadas de balcão.
Meu eu que
entra figura adentro, onde zumbe o inseto e a palavra se dilui.
Meu
eu, lunar e lunático que reina soberano no jardim da lua cheia, situado entre um
subúrbio que já foi operário e as ruínas do muro Pós-Berlim.
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