quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A IMPORTÂNCIA DOS TELHADOS.
Foram nos contar que havíamos sido convocados novamente por causa do nosso amor febril, mas sabíamos que era mentira. Desde que fugimos pela primeira vez do subúrbio operário que tentam nos enganar com ramalhetes turvos em oposição ao céu, sempre límpido e cinza, refletido no convexo das nossas íris. Nós os incomodamos. Também é mentira a afirmação de que nossa oposição cerrada ao regime chamado de azul, tão avesso ao vermelho das nossas vísceras, começou quando nos espantamos com os livros e com o trem. Ela nasceu conosco, e foi se consolidando, aos poucos, na mesma proporção em que o regime crescia. Quando fomos, enfim, encontrados, julgados e desterrados, implantaram um objeto pequeno e não identificado nos nossos ouvidos para servir de ponte amaldiçoada entre nós e eles, mas nós o explodimos.
Não, nós não somos livres, ninguém é, nesse mundo devastado a escravidão assumiu uma nova forma e alguns até dizem que ela não existe, já que agora que o regime evoluiu e todos podem vagar pelos terrenos descampados das fábricas procurando restos. Os que querem comer decentemente, ainda trabalham, mas só ganham comida e são obrigados a abandonar suas crianças sujas, famintas e remelentas em casa, porque todas as escolas foram fechadas. As escolas foram consideradas inúteis e destruídas e os professores foram fuzilados em represália à tanta ineficiência. Fazia tempo que ninguém aprendia nada lá e o governo atual se desobrigou da responsabilidade alimentar dos seus membros.  No tempo em que a gente ainda estudava e achava que a escola tinha alguma serventia esse tipo de sociedade era chamada de distopia, agora, nada mais tem sentido nem nome, e diante da nossa tristeza e tentativa fracassada de nomear as coisas, as crianças reagem com sorrisos vazios e mudos.
Desde que fomos expulsos encontramos muitas crianças pelo caminho. Antes da grande catástrofe todos diziam que as crianças eram o futuro, agora, só as mais fortes conseguem sobreviver, as mais vorazes, capazes de caçar cães selvagens e pombas doentes e não há nada que possamos ensinar para elas ou que elas queiram aprender, comer lhes basta, e nós apenas lhes fazemos companhia.
Aos poucos, fomos abandonando os velhos hábitos, primeiro, deixamos de tomar banho, depois, de usar talheres, e, apesar da infestação de piolhos, parte da população ainda tem vergonha de raspar os pelos das cabeças e dos sexos e se arrastam pelos terrenos baldios com os cabelos desgrenhados e farrapos de cuecas e calcinhas, com os semblantes cada dia mais parecidos com os dos duendes. Ninguém tem mais residência fixa e depois do desastre ecológico que se abateu sobre o planeta nunca mais fez frio e, em breve, todos andarão nus e carecas pelo país (de acordo com as medidas de segurança e higiene decretadas), e será como se sempre tivesse sido assim. Em vão, nós mostramos fotos de bonecos de neve ou nos vestimos com alguns casacos e perucas antigas, mas sempre somos recebidos com sorrisos incompreensíveis. Também tentamos mostrar para os pequenos seu próprio crescimento, com marcas na parede, para lhes ensinar a noção de transformação e de tempo, a moda antiga, e enterramos os mortos que encontramos pelo caminho, mas eles não se importam e nem nos imitam.
Às vezes, pedimos comida para os donos dos canis. Eles vivem nos arredores do que restou da cidade e são responsáveis pelo abastecimento de carne do governo. Para receber nosso pedaço, geralmente vindo da morte de algum cachorro louco, oferecemos alguma menina, ou menino, se o proprietário preferir.  Até hoje, ninguém do nosso bando morreu, mas alguns não retornaram.  Viver ao relento deve ter nos dado uma resistência maior que a dos operários, sempre enfurnados naqueles espaços escuros e opressivos das fábricas, cada dia mais inúteis, já que ninguém tem dinheiro para comprar nada.  Nas fábricas, morrem pessoas todos os dias e elas também não são enterradas, apesar de alguns protestos hipócritas de alguns empresários que têm outros planos para os corpos reaproveitados pelos donos dos canis. 
As igrejas também estão vazias. No início, padres, pastores, kardecistas e pais de santo se uniram em uma tentativa vã de solidariedade, mas diante da impossibilidade de se sustentar o mundo com caridade e do fato de alguns pastores terem se aliado à cúpula do governo em uma franca atitude de covardia, os fiéis debandaram, inconformados com um Deus tão injusto que como último ato de bondade tornou as pessoas estéreis.
Também não existe mais música ou tecnologia. Muitos consideram como marco desse novo tempo o dia em que o último celular do planeta tocou, mas ninguém sabe ao certo que dia foi esse e nós fracassamos ao tentar consertar algumas filmadoras para fazer o registro do grande final e deixar alguma explicação espantada para o futuro, apesar de não acreditarmos nisso, já que até a água está contaminada e o mundo, ou, pelo menos, esse mundo, se desmancha lentamente com a memória apagada por incêndios constantes em museus e bibliotecas velhas (incêndios iniciados pelo governo) e o grande valor dos livros e revistas encontrados pelo caminho é o de propiciarem a oportunidade ideal para que possamos cozinhar as carniças que nos alimentam. No inicio, antes das provisões acabarem e do clima ficar hostil, foram empreendidos esforços para organizar grupos de leitura coletiva nesses espaços, porém, a escassez dos alimentos aflorou os instintos primitivos dos homens e resultou em um uso muito mais imediato e útil para os livros. Atualmente, todas as bibliotecas públicas do passado já foram consumidas, mas, às vezes, algum sortudo encontra alguma perdida, que pertenceu a algum avançado ancestral, e uma grande fogueira é erguida no local em um raro momento de trégua entre o que restou da humanidade. É um momento mágico, mas que corroborou para a impossibilidade de qualquer registro escrito, todo papel encontrado é imediatamente queimado, e só nos resta escrever nos muros, palavras incompreensíveis, que quase ninguém lê e, por isso, fomos convocados, em vão, porque estão acabando as tintas e as palavras. Logo, a humanidade ficará muda.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

 TRAGÉDIA
Presas no trabalho
concentradas e enlouquecidas
as fiandeiras tecem
o insólito dia.
Suas unhas sujas
transpassam o tecido
e de dentro do tapete escuro
surgem as ninfas.
Vendido
o tapete foi encontrado
em um corpo gordo
de cor indefinida.
Um pequeno furo
se arrastava
do umbigo da fada
para o do analista.
Não foram encontradas cartas.

terça-feira, 13 de setembro de 2016






A Importância do inferno em três atos.

No encontro com Perséfone
houve música barata
e após rápidos ruídos de cópulas
e partos a céu aberto
nasceram bebês anencéfalos
que se alimentam de romãs.

Na terra de Sísifo
bebem mulheres vermelhas
enquanto os peixes se suicidam
e se traficam os fígados
dos que não se adaptaram
ao cotidiano de abril.

Sobre o paraíso
só se sabe o que os satélites dizem.
Fotos de imensos icebergs
impedem a visão dos corpos
e todo recém-nascido é banido
para uma terra sem vida
e sem jurisdição.









terça-feira, 6 de setembro de 2016

O TREM
Suicidou-se o trem que nos levava ao centro.
Centenas de pessoas viraram subúrbio
enquanto outras viravam crentes.
Todo mundo que lia no vagão
morreu.
Não foram eles que incendiaram as ruas
ou quebraram as vitrines.
Quando os sobreviventes retornaram
tiranos nunca vistos
destrancaram os portões.
E durante meses
 o trem apodreceu
aguardando salvamento.
Os mortos morrendo lentos
Os crentes se convertendo
O povo se contorcendo
e os gerentes de plantão.