Fui
praticamente chutado para frente de uma moça de óculos que, sem levantar a
cabeça, me fez rapidamente as perguntas de praxe: nome, idade e profissão, mas
na terceira me embaralhei e declarei que
era palhaço. Ato impensado que, além de eliminar aquela que, nas atuais
circunstâncias, tinha se tornado a pergunta mais importante, me condenaria, com
certeza, aos piores trabalhos e acomodações.
Preocupado,
não vacilei e ergui de modo instintivo e brusco a criança maltrapilha que
estava ao meu lado declarando que éramos dois, e quando a moça perguntou se era
minha filha, eu disse que sim, e antes que ela tivesse tempo de elaborar
qualquer outro tipo de questionamento a respeito daquela criança loira e
inquieta me apressei em explicar que minha mulher estava agora na companhia do
bom Deus e, sem saber se tinha sido salvo pela criança ou pelo nome do Senhor,
fui encaminhado ao Departamento de Caridade.
O
fato é que os circos haviam sido proibidos, e eu, pela primeira vez na vida, ficado
desempregado, mas mesmo após ter perdido tudo, não me desesperei, juntei minhas
poucas coisas e me mudei para um recanto distante, uma vala que se formava sob
um viaduto abandonado e escuro com a intenção de me esconder do mundo enquanto
decidia o que fazer, mas meu sossego durou pouco, logo me encontraram e após um
breve alvoroço me encaminharam, junto com uma menina cabisbaixa que havia me
seguido, ao Centro Comunitário. Pelo visto o novo governo não queria saber de
gente desocupada perambulando pela cidade e incentivava seus membros fiéis a
prenderem e, se necessário, até a matarem essa gente teimosa que se negava a aceitar
a felicidade que estava reservada para cada um de nós.
No
Centro, graças a um resquício de humanidade que havia restado na funcionária
magricela e que parecia estar refletido na lente dos seus óculos sujos, para
morrer em seguida nos seus lábios mudos, pudemos tomar um banho, coisa rara,
pois já fazia alguns anos que a água estava racionada. Um Senhor de idade que
tomava banho no Box contíguo ao meu se distraiu e começou a cantar uma espécie
de tango, mas logo tomou uma coronhada e o silêncio voltou a dominar o local.
Só eram permitidos Hinos.
Após o banho e com a promessa de uma refeição decente,
me fizeram assinar uma série de documentos e papeis inúteis com a finalidade de
nos classificarem para fins administrativos. Inventei tudo, nomes, antigo endereço,
histórico médico, grau de escolaridade e datas de aniversário e só depois disso,
com o desdém com que tratavam os vagabundos, nos entregaram um pão com manteiga
e uma caneca de leite e nos encaminharam para um dormitório coletivo com a
promessa de que amanhã eu não escaparia do meu Glorian Day.
Acordamos
cedo e fomos novamente encaminhados para uma fila. Alice foi matriculada na
escola e eu fui trabalhar temporariamente como auxiliar de enfermagem no asilo
da cidade. Depois do fracasso da entrevista decidi inventar um curso de técnico
de enfermagem e os organizadores decidiram me dar uma chance, apesar de eu ter
declarado que não tinha nenhuma experiência na área. O agente explicou que o
prazo máximo de permanência no Centro era de sessenta dias. Depois disso, eu
deveria alugar um quarto e partir. Se necessário, eles me ajudariam. O único
objetivo deles era me fazer uma pessoa feliz. Estava tudo no longo regulamento
que me entregaram e que eu não li. Eles serviam café da manhã e janta e também
ofereciam cursos rápidos de profissionalização e alguns cursos noturnos que
tinham como objetivo a elevação do espírito (era assim mesmo que estava
escrito) e a participação em pelo menos um deles, era obrigatória.
Descobri
que estavam sendo oferecidos três cursos: Poesia, Teatro e Introdução à
Filosofia. Segundo os folders os objetivos eram comuns: Tentar recuperar as
almas indóceis através de um processo paulatino de socialização em busca da
alegria e com a certeza de que todos eram abomináveis, (já que nada disso me
interessava), decidi me inscrever no curso de poesia e no primeiro dia de aula
descobri que eu tinha razão: A poesia era apenas uma desculpa para a
instauração de um verdadeiro muro das lamentações. Eles escreviam pouco e o
verso livre era proibido. A rotina se resumia em ouvir as histórias de vida dos
participantes, nos moldes dos alcoólicos anônimos e, ao final da sessão, escutar
um soneto de gosto duvidoso que o orientador lia de acordo com o tema escolhido
para a noite. O lado perverso disso tudo era que, aparentemente, os temas
podiam ser escolhidos livremente pelos participantes, mas, por alguma razão,
semana após semana, o tema do amor bucólico se repetia e todos pareciam
satisfeitos.
Não
demorou muito e logo notei que só havia gente solitária como eu no curso. Provavelmente
o resto do mundo estava feliz celebrando a vida com suas famílias nos shoppings
que eram, agora, o único lugar recomendável e seguro para se divertir. Entre os participantes, todos muito tristes,
uma mulher chamou minha atenção, não porque fosse bonita, mas porque era a
única que, como eu, se dava a dignidade de ficar calada e, em um dia de chuva, tomei
coragem e a convidei para sair.
Ela
aceitou e fomos até a cozinha tomar um café frio. Não era exatamente um passeio
romântico, mas a falta de dinheiro nos deixava sem opção. A voz dela era
agradável e seu cabelo, assim como seus dentes, perfeito. Além disso, ela tinha
uma bela bunda e para mim isso bastava. Seu nome era Tina e ela trabalhava como
recepcionista em uma agência de publicidade. Ela tinha feito uma dessas
faculdades populares e descoberto, mais tarde, que seu diploma não valia nada.
Havia uma verdadeira máfia de cursos, ditos superiores, instaurada no país. Tina
era uma mulher solteira de 30 anos que, após ter estudado a vida inteira na
escola pública, se equilibrando entre os subempregos que era obrigada a aturar
e uma educação de quinta categoria, tinha sido convencida a fazer um curso de
Administração de Empresas.
Antes
disso, Tina tinha sido uma cabeleireira independente, mas esse ramo havia sido
dominado por uma associação comercial que, através de distintas estratégias,
incitava todos a andarem extremamente arrumados, (mesmo que passassem fome para
isso). Entre vários recursos, como a absurda proibição de se fazerem unhas em
casa, eles disseminavam intrigas entre seus membros incentivando-os a fazerem
comentários maldosos acerca da aparência das pessoas durante as reuniões que
passaram a ser obrigatórias para todos que desejassem ser deixados em paz, e
foi por causa disso que ela foi parar ali. Ela ficou desempregada e acabou
sendo despejada do quarto e cozinha que tinha alugado na periferia.
A
vida era um tédio e a única coisa que eu e Tina podíamos fazer juntos era
frequentarmos o curso de poesia e as reuniões de domingo enquanto a menina, que
sempre nos acompanhava, passava seu tempo sendo adestrada pelas educadoras
infantis. Alice logo gostou de Tina e a possibilidade de formarmos uma família
agradou os líderes da organização que passaram a nos conceder alguns pequenos
privilégios, como entregar uma fatia extra de pão para a menina, por exemplo,
entre outras miudezas que engrandeciam mais os espíritos deles do que os
nossos estômagos. Chegaram até a me presentear com a imagem de um cristo negro e com uma
coletânea de poemas do Castro Alves, e eu logo tratei de pendurar a imagem na
cabeceira da minha cama.
Nas
reuniões do Centro não havia tanta fofoca, já que lá todo mundo era pobre e,
por essa razão, ela era uma das mais frequentadas da cidade, inclusive por
gente que já havia deixado o local fazia tempo e que para poder continuar a
frequentá-lo, alegava ter se afeiçoado ao pastor, um velho encardido e senil
que nunca se lembrava de nada, se esquecendo, às vezes, de comparecer às suas
próprias reuniões, principalmente as de domingo, fato abertamente lamentado por
todos.
Ninguém
sabia explicar como as coisas haviam chegado a esse ponto, mas os poucos
que não haviam sido engolidos pelo sistema e que tentavam
manifestar algum tipo de resistência, (os que conseguiam sobreviver
escondidos), tinham desenvolvido uma teoria que chamavam de “Teoria do
Emburrecimento Paulatino” e juravam de pés juntos que o país havia sido vítima
de uma conspiração iniciada há muitos anos dentro do sistema educacional.
Eu
sabia de tudo isso porque inconformado com o fim do circo e com a proibição da
cerveja, que agora tinha ficado, (assim como todos os outros prazeres),
restrita aos ricos que podiam comprá-la no mercado negro, tinha me juntado a um
pequeno grupo de resistência para o qual Tina me apresentou (ela era viciada em
tabaco e eu neto de um anarquista que, segundo meu pai, tinha acabado com a
nossa família com sua mania de livros).
Eu queria me
informar e ler mais, mas era tão cruel a jornada de trabalho que me era imposta,
primeiro pelo meu pai e agora pelo asilo, que se tornava impossível desenvolver
qualquer pensamento mais complexo a respeito da realidade, eu chegava exausto e
após ter passado o dia inteiro dividido - entre a lembrança do odor dos bichos
enjaulados, dos quais eu havia cuidado no passado, e a imagem esverdeada dos
velhos desmemoriados dos quais eu trocava as fraldas no presente e que
representavam meu futuro - no final do dia eu só conseguia me entregar à
fantasia das novelas e à masturbação solitária ao lado do Navio Negreiro, e quando
chegou meu dia de ir embora, com medo de ser totalmente absorvido pelo sistema,
já que a tendência das coisas era piorar, eu deixei a menina com a Tina e
caminhei em direção à ponte com o objetivo de deixar claro que, apesar de todos
os esforços, eles não tinham conseguido me obrigar a ser uma pessoa feliz.