terça-feira, 16 de setembro de 2014

SOLIDÃO DO BONECO DE CHUMBO


Para a dor de deitar raízes
sobre trapos
após amar
um boneco de chumbo.
          
               É sábado de carnaval e o soldado de chumbo arrasta solitário sua única e magra perna enquanto espalha sua voz anasalada pela viela, surda, cega e muda da Cracolândia: Confessando bem/ todo mundo faz pecado/ logo assim que a missa termina/ todo mundo tem um primeiro namorado/ só a bailarina que não tem.
            Era um sábado ensolarado, dia sagrado, de festa pagã, dia da iluminação dos pobres que escorridos de suor e desejo sambavam e descansavam misturados aos ricos pela avenida. Surpreendido, o soldado se deparou com a bailarina, que alheia a sujeira do seu corpo e do seu vestido, continuava bela, embora um pouco mais encorpada. Foram amantes no tempo passado, boneco e bailarina se masturbaram muito em histórias proibidas para crianças, histórias que não foram escritas. Ele fingiu não vê-la, mas ela se aproximou.
            - Olá, solitário boneco de chumbo. Venha, pois procuro companhia, um trago vai lhe fazer bem, e embora você não transpire, preciso de alguém que me escute.
            - Lamento, mas ainda procuro por minha perna.
            - Aceita um ácido?
            - Não, obrigado, parei de sonhar.
            - A imaginação é o alimento dos pobres, disse a bailarina engolindo o comprimido, e, além disso, toda essa realidade ainda vai te matar. Vejo que continua gelado, embora um pouco menos colorido.
            - Andei doente, mas já me curei há tempos.
            - O tempo é uma matriz composta de esquecimentos.
            - E de rancores, respondeu o soldado, com um sorriso ameaçador entre os dentes.
            - Não sei porque insiste, em uma guerra não há vencedores, todos saem desbotados, e, além disso, o sol nunca lhe fez bem.
            - O mundo é uma ferida preta e branca aberta por uma metralhadora em estado de graça.
            - Foi por isso que inventaram o álcool, os fogos de artifício, a poesia e os amores impossíveis, mas já que insiste em se manter triste, venha, quem sabe lhe encomendamos uma perna se conseguirmos encontrar algum artífice.
            - Só aceito se for de Baobá.
            - Continua exigente, é uma árvore antiga, talvez extinta.
            - Mas de fortes raízes.
            - Que seja, disse a bailarina, rodopiando em volta do boneco, é a árvore dos príncipes, mas veja, não é Gepeto aquele que se aproxima?
            - Não seja tola, é só um velho bêbado.
            - Vamos logo/ Gepeto não gosta de mentiras!/ Vamos, disse a bailarina arrancando a muleta da mão do boneco e o puxando por entre a multidão. Antes de ser esmagado, ele ainda gritou: - Em que momento saímos dos livros?
            - Também não me recordo, respondeu a bailarina ao se abaixar para um beijo de despedida, tudo o que sei é que era uma vez um soldadinho de chumbo que percorreu o mundo todo em busca de uma perna inexistente e em um sábado ensolarado de carnaval acabou morrendo atropelado porque não aprendeu a dançar.



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