sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014


 
Paraíso Tropical

 

Era meio dia quando Josef subiu no navio. A viagem havia sido longa e ele que, até então, nunca tinha visto o mar, só teve tempo de sentir um empurrão. Quase caiu, mas não precisou olhar para trás para saber de quem era aquela mão pesada que o segurou. Nunca tinha visto tanta gente junta, mas talvez aquilo não fosse novidade para o pai e era sempre o pai que mandava. Gostaria de ter ouvido uma voz dizendo: Olha Josef, agora vamos viajar muitos dias e você vai ter tempo de sobra para apreciar a paisagem, mas quando se deu conta o pai já havia sumido da fila e ele só viu as irmãs, o irmão e a mãe. Antes do navio eles viajaram três dias, direto dos campos da Hungria para a capital da antiga Iugoslávia. Onze irmãos, cinco vivos. A vida é difícil, a mãe suspirava toda vez que jogava um corpo na carroça enquanto o pai murmurava: Um a menos.

Toda essa viagem se resumia a isso, uma vida mais fácil: Passagens de terceira classe para outro mundo e pouca bagagem. A mãe segurava Sofía que ainda não podia se segurar enquanto o pai informava balbuciando que eles iam para a Argentina. Agora ele se lembrava. O pai tinha voltado e dito apenas: tudo certo. Devia ter ido acertar os papéis, as dívidas. Para ele aquilo parecia ser muito caro, mas se perguntasse pelo dinheiro apanharia. Tinha ouvido o pai dizer para a mãe que comeriam no navio e sentiu dor de estômago, um dia sem comer, água, só a que a mãe pegou da bica e ofereceu ao primogênito, como uma sina, o que sobrou.

No cais (palavra que ele só conheceu depois) tinha gente de tudo quanto é tipo com coisas que ele nunca tinha visto: mulheres elegantes, saias coloridas e comidas estranhas. O embarque demorou. Primeiro as pessoas cheirosas com suas grandes malas e frutas. Depois, o baixo clero da tripulação e, por último, eles, os da terceira classe que uma voz anônima chamou. Ele ouviu que a viagem ia demorar muito, vários dias e se assustou: Será que tinha sopa para todos aqueles que se espremiam? O pai achou um canto e colocou ali as poucas coisas e as cobertas. Eles não teriam cama, descobriu, e o colchão improvisado era para a mãe e as meninas, que juntas já não cabiam. O pai, André e ele dormiriam no chão: porque a vida é dura.

Ele não queria sentar e ficou debruçado na beira do navio olhando a cidade sumir enquanto o pai picava fumo e André não fazia nada, até  parecia que ele tinha nascido ali. As meninas olhavam tudo, mas eram muito pequenas para enxergar por cima da mureta e ele pensou que se chovesse as coisas iriam piorar. Um apito soou alto e causou um silêncio momentâneo enquanto a terra virava mar.

Josef pensava que aquela terra devia ser boa, porque se não fosse, porque viajar tanto? Por causa da fome? Mas então, naquele porto mesmo tinha até fonte e tanta coisa para vender. No campo eles plantavam, mas não comiam, tinha a geada e tinha o dono da terra e as feiras não tinham mais, tudo por causa da guerra que aconteceu bem no ano em que ele nasceu e ele achava que era por isso que o pai não gostava dele e não pôde se alistar... Guerra era aquela que ele tinha todo dia sem procurar.

Já fazia um tempão que eles estavam ali quando uma sineta tocou e um homem gritou qualquer coisa. O pai falou então para a mãe levar as crianças e ele se animou, mas sentiu logo aquele peso no ombro: você fica aqui pra tomar conta das coisas comigo, quando eles voltarem nós vamos. Não sobrou quase ninguém no convés e demorou muito para a mãe voltar e ele ainda pensou em dizer: porque o André não fica? Mas se calou.

Então eles foram e ele não sabia se aquela sopa tinha ficado velha ou era daquele jeito e achou que nunca ia descobrir. O pão também era velho e a água barrenta, mas o pai comeu como se fosse uma benção e ele fez o mesmo. Depois de comer, ele foi dar uma volta e um homem estranho, que falava uma língua mais estranha ainda, lhe ofereceu uma banana, ele não sabia o que era, mas aceitou e correu para bem longe da família, porque se alguém visse, provavelmente não ia sobrar nada e depois de descascar, como tinha visto e colocar aquilo na boca acreditou que a vida podia melhorar.

Quando voltou, o pai não o encarou, o pai só falava o necessário e quando se zangava batia, ao lado dele parecia que todo o mundo emudecia, até o som da multidão diminuía, ( isso só lhe ocorria agora) e depois de um silêncio enorme, ele perguntou se ia ter aquela fruta amarela aonde eles iam e o pai se limitou a responder: Não sei e se levantou: Cuide da sua mãe e irmãs. A mãe não disse nada, mas ele sabia que era ela quem cuidava dele.  O pai saiu e ela se espremeu para sobrar uma beirinha de colchão e foi bom para ele descansar, mas a noite começou a passar e nem o sono nem o  pai chegavam e ele se levantou. Tinha gaita e violão, bebida, rato e dançarina, mas ele não viu o pai não. Só depois de muito tempo é que o pai voltou, devia estar sem sono como ele, talvez também se perguntasse se haveria bananas na Argentina, mas abotoou as calças e dormiu como uma pedra, mal chegou. Ele, quando dormiu, já era manhãzinha e logo o sino da comida tocou. Chá frio e pão. E assim foi por muitos dias. A comida e o pai.

 Quando chovia, as mulheres e as crianças iam para o coberto, que não dava para todo mundo e os homens ficavam no convés, com sorte, com uma lona. Tinha gente que passava mal, vomitava e a sujeira do lugar se acumulava, às vezes jogavam uma água e amarravam as pessoas no mastro, que eram perturbadas pelas moscas do oceano, como as chamavam os marinheiros, mas que, na verdade, também imigravam atrás das bananas. No começo tinha remédio, depois acabou. Aos poucos, as pessoas se acostumavam e as que não se acostumavam morriam e eram jogadas no mar e ele achava até bonito, mas um dia a Sofía acordou com desarranjo, fazia agora um calor insuportável e seu corpinho também se foi, refrescado pelo mar, um pouco antes de chegar ao Brasil, conforme ele já tinha descoberto, mas seu pai, como sempre, não disse nada e ela ficou ali para sempre perdida na fronteira do nada, enquanto uma vida nova se aproximava com o vento quente do mar...
 
 
 
 
 
 
 
 

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