Para a dor de deitar raízes
sobre trapos
após amar
um boneco de chumbo.
É
sábado de carnaval e o soldado de chumbo arrasta solitário sua única e magra
perna enquanto espalha sua voz anasalada pela viela, surda, cega e muda da Cracolândia:
Confessando bem/ todo mundo faz pecado/
logo assim que a missa termina/ todo mundo tem um primeiro namorado/ só a
bailarina que não tem.
Era
um sábado ensolarado, dia sagrado, de festa pagã, dia da iluminação dos pobres
que escorridos de suor e desejo sambavam e descansavam misturados aos ricos
pela avenida. Surpreendido, o soldado se deparou com a bailarina, que alheia a
sujeira do seu corpo e do seu vestido, continuava bela, embora um pouco mais
encorpada. Foram amantes no tempo passado, boneco e bailarina se masturbaram
muito em histórias proibidas para crianças, histórias que não foram escritas.
Ele fingiu não vê-la, mas ela se aproximou.
-
Olá, solitário boneco de chumbo. Venha, pois procuro companhia, um trago vai
lhe fazer bem, e embora você não transpire, preciso de alguém que me escute.
-
Lamento, mas ainda procuro por minha perna.
-
Aceita um ácido?
-
Não, obrigado, parei de sonhar.
-
A imaginação é o alimento dos pobres, disse a bailarina engolindo o comprimido,
e, além disso, toda essa realidade ainda vai te matar. Vejo que continua
gelado, embora um pouco menos colorido.
-
Andei doente, mas já me curei há tempos.
-
O tempo é uma matriz composta de esquecimentos.
-
E de rancores, respondeu o soldado, com um sorriso ameaçador entre os dentes.
-
Não sei porque insiste, em uma guerra não há vencedores, todos saem desbotados,
e, além disso, o sol nunca lhe fez bem.
-
O mundo é uma ferida preta e branca aberta por uma metralhadora em estado de
graça.
-
Foi por isso que inventaram o álcool, os fogos de artifício, a poesia e os
amores impossíveis, mas já que insiste em se manter triste, venha, quem sabe
lhe encomendamos uma perna se conseguirmos encontrar algum artífice.
-
Só aceito se for de Baobá.
-
Continua exigente, é uma árvore antiga, talvez extinta.
-
Mas de fortes raízes.
-
Que seja, disse a bailarina, rodopiando em volta do boneco, é a árvore dos
príncipes, mas veja, não é Gepeto aquele que se aproxima?
-
Não seja tola, é só um velho bêbado.
-
Vamos logo/ Gepeto não gosta de mentiras!/
Vamos, disse a bailarina arrancando a muleta da mão do boneco e o puxando por
entre a multidão. Antes de ser esmagado, ele ainda gritou: - Em que momento saímos dos livros?
-
Também não me recordo, respondeu a bailarina ao se abaixar para um beijo de
despedida, tudo o que sei é que era uma vez um soldadinho de chumbo que
percorreu o mundo todo em busca de uma perna inexistente e em um sábado
ensolarado de carnaval acabou morrendo atropelado porque não aprendeu a dançar.