ANÁLISE DA NARRATIVA “O
PÁSSARO TRANSPARENTE” DE OSMAN LINS.
Indefinido, é assim que começa a
descrição do personagem do primeiro texto do livro Nove, novena de Osman Lins
que trás na capa o subtítulo: narrativas, deixando clara sua adesão à estética
do modernismo que tem como uma das suas características o enfraquecimento das
fronteiras tradicionais, não apenas entre os gêneros, mas entre as linguagens
artísticas, conforme depreendemos do texto aqui analisado, que alterna cenas semelhantes
a quadros, com a consciência de um protagonista cuja interioridade é construída
em conexão direta com as paisagens nas quais se passam os acontecimentos.
Oscilando entre o passado e o
presente, o conto narra de forma não linear, através de uma descrição semelhante
à montagem e ao corte cinematográfico, que se alterna com as reminiscências
típicas da memória, a história de um homem bem sucedido que amargurado, recorda
os sonhos vividos na juventude.
No ensaio Reflexões sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld[1]
levanta a hipótese de que, no campo das artes ocorreu um fenômeno que ele intitula
de “desrealização”, que se observa inicialmente na pintura, e que está
relacionado ao fato de a arte ter deixado de ser mimética. Segundo ele, tal
fenômeno também pode ser observado no romance moderno e se manifesta
principalmente na fusão entre passado, presente e futuro. Essa abolição do
tempo cronológico abala a perspectiva nítida do romance realista que deixa de
apresentar o retrato de indivíduos íntegros. Apesar de ROSENFELD estar se
referindo ao romance, suas observações podem ser aplicadas ao presente texto,
já que Nove, novena marca o início de uma fase experimental do autor na qual as
questões relativas a uma definição clara de gênero perde a centralidade, como
podemos notar no trecho da entrevista abaixo transcrito:
O Fiel e a Pedra
começou como novela e depois virou um romance. Como e quando você determina o
gênero? Poderia definir o que é o conto, a novela e o romance? É razoável
persistir o gênero literário na literatura contemporânea?
Devemos conceder maior
amplitude à pergunta que leva a essa controvertida questão de gêneros,
indagando, por exemplo, o que se entende por ficção. Que devemos entender por
ficção? Acho ser a fixação, através da palavra escrita, e com ênfase na
aparência das coisas, pelo autor decompostas e reorganizadas, de uma visão
pessoal do mundo, não raro absurda e quase sempre insólita, que no entanto se
confunde, sob a pressão do gênio do escritor, com o universo onde todos
habitamos. A designação do gênero me parece acadêmica, não importa. E as
existentes nem sempre satisfazem. Designei os trabalhos de Nove, Novena, por
exemplo, como narrativas[2].
No posfácio de Nove, novena: “Palavra
Feita Vida” [3],
José Paulo Paes se refere à “Um pássaro transparente”
como um conto, já que: ele envolve um
único conflito dramático para cuja resolução se encaminha de pronto o fio
fabular, embora de forma não linear, no entanto, nesse mesmo texto, ele observa
que: essa montagem descontínua de
flagrantes temporais, que dinamizam a forma do conto, ameaçam romper os limites
que o separam da novela.
Ainda em relação à questão do gênero, é interessante pensarmos nas
reflexões de Júlio Cortázar[4]
quando ele aproxima o conto da poesia, nesse aspecto, apesar das diferenças
encontradas entre os autores, há, nas narrativas de Osman Lins, uma aproximação
entre esses gêneros, na medida em que a contemplação ocupa um importante papel refletido
nas cenas descritivas, que se assemelham literalmente a quadros. Ao contrário
do que ocorre em um conto realista, em “O Pássaro Transparente” a descrição
dissolve a ação e a subjetividade que emerge não é propriamente a de um eu
individualizado.
Nesse sentido, é interessante pensar na relação que Adorno[5]
estabelece entre lírica e sociedade, quando ele diz que a universalidade do
teor lírico é essencialmente social: “Só entende aquilo que o poema diz quem
escuta, em sua solidão, a voz da humanidade”. E é essa voz que ouvimos
reverberar nessa bela narrativa de Osman Lins.
A narrativa começa com a descrição de um
menino de oito anos que, ao fitar um gato preto e branco, estabelece com ele
uma relação de contraponto pautada na superioridade da sua espécie e na sua
durabilidade temporal em relação ao felino, e nessa primeira descrição já
encontramos o que NITRINI[6]
chamou de “Poética de tensões”, marca registrada da literatura de Osman Lins de
Nove, novena à Rainha dos cárceres da Grécia:
“Você me olha de cima, porque está no muro. Mas vou ser um homem, vou
viver cem anos. Crescer. E quando for mais alto que portas e telhados, onde
estarás? Hein? Sentado onde? Olho para você e já vejo a ossada brilhando no
monturo. Andas mansinho, és um silêncio andando. Eu, quando crescer, meu bater
de calcanhar no chão será como trovões”[7].
Mas
apesar dessa aparente altivez, retratada através da oposição entre barulho e
silêncio, o menino já traz uma tristeza escondida, fruto de uma resignação que vai
sendo desvendada ao longo da narrativa, na qual descobrimos que a capacidade de
permanência do personagem não está relacionada apenas a uma questão temporal,
mas a continuidade de uma condição social que ele herda do pai, um senhor de
engenho de um pequeno vilarejo localizado em algum lugar, provavelmente no interior
do nordeste reiterando a hipótese de uma representação arquetípica que permeia
a obra do autor, e ao menino de rosto brilhante e cabelo fino e claro, se
contrapõe: a face de um homem exausto,
emoldurada pela janela do trem[8]
que se dirige ao velório do pai, imagem que antecipa a transformação da
criança sonhadora em um homem cruel:
“Seus cabelos escuros começam a embranquecer,
a roupa de casimira negra (luto do pai) é demasiado frouxa, demasiado cômoda,
as meias brancas enrugam-se nos tornozelos, os sapatos não brilham...”[9].
Após a lembrança das cartas rasgadas no trem pelo
protagonista, vai se desenhando aos poucos a tentativa de resistência de
libertação de uma herança social imposta empreendida, sem sucesso, pelo
personagem durante sua juventude e, na contraposição que ele estabelece, dessa
vez com a paisagem, que ao contrário dele, mudou pouco, encontramos novamente
aquela resignação apontada no começo da história e que está refletida na
imobilidade: ele mudou por fora, envelheceu, mas por dentro continua o mesmo: “Este engenho, como os outros que vejo no
caminho, parece eterno com seu triste bueiro, seus telhados velhos e o copiar
sombrio”[10]
e, além disso, mesmo que ele pudesse voltar no tempo, de nada adiantaria: “A juventude do homem, felizmente não é como
a folhagem dessas árvores. Se fosse, se eu voltasse a ser jovem, cometeria os
mesmos erros, talvez outros maiores”[11].
A aceitação do papel social que lhe
foi atribuído fica ainda mais evidente no momento descritivo de contemplação do
rosto do pai morto. Nesse quadro literalmente comparado a um “estudo quase
superposto” fica evidente o papel de continuador que o personagem assume em
relação ao pai:
“Dois rostos, um
derrisório e solene de perfil no travesseiro alto, mandíbula presa num lenço,
outro de frente, mordaz, fixando o morto, ambos imóveis. O perfil – em vida não
era assim: nítido – dá uma impressão de juventude, não obstante o bigode cor de
prata suja; o contemplador, pelo contrário, está envelhecido, e assim os dois
parecem estudos quase superpostos – um em repouso, outro contraído – do mesmo
rosto.” [12]
Toda a descrição relativa à casa que
ele herdou e na qual vive com a mulher designada pelo pai, Eudóxia, única
personagem nomeada na história, nome grego e que tem como significado: de boa
reputação, é apresentada como algo imóvel, amarelo, pastoso. O espaço doméstico
é opressivo, escuro. Já as lembranças relativas à sua ex-namorada ocorrem todas
em locais de movimento: O primeiro lugar no qual ele se lembra dela é no trem,
quando está empreendendo uma viagem simbólica para o velório do pai, e o
encontro com ela, única parte da história que contém diálogos e que está marcada,
portanto, por uma fala externa ao personagem, se dá no cais, onde ele costuma observar
os paquetes e lembrar dos sonhos de juventude que não concretizou e que ela está prestes a
realizar:
“- Aí está”. Depois de tantos anos de espera, vou atravessá-lo.
-
Tenho visto seu nome nos jornais. Li que você obtivera uma bolsa na Espanha.
Fiquei contente, disse comigo: “Ora veja, quem podia imaginar que ela ia se
tornar uma artista famosa”[13].
Eudóxia é o oposto da ex- namorada do
protagonista, que é a representação luminosa do próprio ato criativo,
reiterando essas oposições de luzes e vozes que acompanham todo o texto:
“Tinha
um dente de ouro. A pele é menos brilhante; não os olhos. Mais bonito o cabelo,
os seios menores, mais fina a cintura. Atraente, com qualquer coisa de intenso
e de maduro em seu vestido azul, contra a parede ocre e o negro telhado do
armazém. Eudóxia é mais jovem do que ela. E parece mais velha, em seus vestidos
frouxos, em seu jeito ausente e sorrateiro, disfarçando a perene atitude de
suspeita...”[14]
Sintomaticamente a ex-namorada está
indo para Granada e ele lhe pede que ela lhe envie um cartão postal de ciganos,
um povo nômade e que não costuma ter boa reputação, ao qual ela própria é
relacionada na menção ao seu dente de ouro, que costuma ser uma das
características atribuídas a eles e que brilha.
Em seguida ele recorda de uma fala
dela que, apesar de estar no presente, remete a um diálogo ocorrido no passado,
no qual ela discorre a respeito da mesquinhez daquela cidade em relação aos
grandes centros e alude a possibilidade de sair, junto com ele, daquele lugar,
fazer uma viagem, atravessar o mar, e na continuidade dessa lembrança da
juventude transparece a mesquinhez do personagem, que novamente se assemelha à
paisagem, ele é tão mesquinho quanto a cidade:
“Havemos. Ela diz
havemos. Eu, não tu, farei essa viagem. Não sabes o que disse um poeta, desiludindo
a sua namorada, decerto parecida contigo e que imaginava continuar ligada para
sempre a ele? Eu sou Goethe!”[15].
E na sequencia da comparação que ele
faz dele mesmo com Goethe, comparação que nos fornece uma hipótese de
investigação relativa ao romantismo, já que diferentemente do que costuma
ocorrer nesses romances, o protagonista não conseguiu se livrar do seu destino
e viver as aventuras típicas de um herói, temos uma inversão irônica refletida
no seu desejo de voltar para a cidade e encontrar a ex-namorada casada com
algum comerciante:
“Mas sei que um dia
voltarei aqui rodeado de glória. Teu marido será empregado do comércio, ou
talvez escrevente no cartório, terás um lar e filhos; mas teu orgulho maior, a
ninguém confessado, virá de seres o que és agora: a testemunha de minha
adolescência. Eu sou Goethe.”[16]
A
descrição da cena do seu casamento com Eudóxia, cujo significado é anunciado
pela má caligrafia da palavra amor escrita no bolo e que, não por acaso, é a
única palavra que aparece no texto em letras maiúsculas, reforça a hipótese de
que a narrativa em questão não está tratando de uma singularidade, mas de uma
questão universal, no caso, do amor romântico. Amor, aliás, é a única palavra referida
como tal dentro do texto:
“Se
não nos une o amor daqui ausente - , como poderia ser eterno? E não perca seu
tempo em busca de símbolos. Para nós, só um é válido, esses bonecos ocos,
ostentando uma palavra grave (a palavra, a palavra!) num coração de papel. É
possível que nem chegue a desembaraçar-se dos presentes hoje recebidos.”[17]
Além disso, enquanto a ex-namorada é
associada a imagem de um pássaro transparente, cujos olhos ainda brilham, signo
da liberdade que aponta para o exterior, Eudóxia é associada a imagem de um
poço, voltada de forma cada vez mais implacável para si mesma:
“Essas
palavras dele, sei por onde se escoam. Não fogem pelas portas, nem pelas
janelas; desparecem a meu lado, para sempre, sugadas por este poço ao qual
liguei minha vida e de quem sinto o ossudo cotovelo”.[18]
Após a lembrança do seu casamento
ele espera seus empregados saírem para procurar entre seus papeis os poemas que
ele ainda preserva, e dos quais se lembrou graças à notícia que leu no jornal a
respeito dos quadros da ex-namorada e que provavelmente é o fato que o levará ao encontro com ela antes da sua
partida, e no final do texto, apesar da fragmentação propiciada pela memória e
pelos enfoques narrativos semelhantes a imagens cinematográficas, o autor consegue
construir uma narrativa que possui unidade.
Ao analisar esse conto em comparação
com o conto “Os Gestos”, Graciela Cariello[19]
observa que os narradores osmanianos, ubíquos e aperspectívicos, constroem o
espaço em procura da totalidade cósmica, mas, enquanto em “Os Gestos”, o
personagem passa por uma espécie de epifania através da visão, ao vislumbrar a
transformação da sua filha em uma mulher, no final do Pássaro Transparente a
imagem da ex-namorada pintora enquanto: o
pássaro que conseguiu quebrar a casca e descobrir um modo criador e livre de
existir[20]
se contrapõe a dele, cujas mãos se fecharam cada vez mais até deixarem de
lhe pertencer, o que aponta para uma defesa simbólica da arte como um elemento
libertador.
BIBLIOGRAFIA
LINS,
Osman. Nove, novena. Narrativas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LINS,
Osman. Os Gestos. São Paulo: Moderna,
1994.
ADORNO,
Theodor W. Notas de Literatura I. São
Paulo: Editora 34, 2006.
AUERBACH,
Erich. Mimesis. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
ROSENFELD,
Anatol. Texto/Contexto I. São Paulo:
Perspectiva, 1996.
CORTÁZAR,
Julio. Valise de Cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
Tessitura, Interações,
Convergências. Organização Sandra Nitrini. São Paulo:
Hucitec: 2011.
REVISTA VIVER E ESCREVER. Entrevista concedida a Edla Van Steen –
Porto Alegre.Vol 1, Editora L&PM, 1981.
[1]
ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto I.
São Paulo, Perspectiva, 1996.
[2] REVISTA VIVER E ESCREVER. Entrevista concedida a Edla Van Steen –
Porto Alegre.Vol 1, Editora L&PM, 1981.
[3]
PAES, José Paulo. Palavra feito vida. In: Nove,
novena. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
[4]
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio.
Perspectiva, São Paulo, 2013.
[5]
ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I.
Editora 34: São Paulo, 2006.
[6]
NITRINI, Sandra (Org.). Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo:
Hucitec: Abralic, 2011.
[7]
Osman Lins. O Pássaro transparente,
In: Nove, novena. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 9.
[8]
LINS, Ibidem, 1999, p. 9.
[9]
LINS, Ibidem, 1999, p. 9.
[10]LINS,
Ibidem, 1999, p.9.
[11]
LINS, Ibidem, 1999, p. 10.
[12]
LINS, Ibidem, 1999, p. 12.
[13]
LINS, Ibidem, 1999, p. 13.
[14]
LINS, Ibidem, 1999, p. 14.
[15]
LINS, Ibidem, 1999, p. 16.
[16]
LINS. Ibidem, 1999, p. 16.
[17]
LINS, Ibidem, 1999, p. 18.
[18]
LINS, Ibidem, 1999, p. 17.
[19]
GRACIELA, Cariello. Iluminações e vozes. (Osman Lins, Juan Saer, Jorge Luis
Borges). In: Tessituras, Interações e Convergências. Org. NITRINI, Sandra. São
Paulo: Hucitec, Abralic, 2011.
[20]
LINS, Ibidem, 1999, p. 19.
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