Chirico - Ettore e Andromaca (1917) |
Estamos vestidos de alfabeto,
Não sabemos nosso nome.
Cavalos brancos vermelhos
Mastigam o mundo:
Olhai a sombra da terra,
Uma enorme guilhotina.
Galopa fantasma
Vida contra vida.
Murilo Mendes. ( As Metamorfoses)
O MURO
Mergulhei as palavras na chuva para
ver se encolhidas pela dor eu conseguia guardá-las, como guardei os dentes da
infância, ou a dentadura partida do meu avô, mas dentro de corações
solitários é tudo apertado e viscoso, como dentro das vaginas, e por mais que
me esforçasse, as palavras se esvaíam com a saliva e eu não
conseguia apanhá-las para amarrá-las ao inútil fio de Ariadne que eu
trazia. Não, isso não é um sonho, é apenas a constatação muda de que nós sempre
estaremos aqui unidos e separados pela fantasia desse muro.
Lembrei de todos os muros que
marcaram minha vida, do falecido muro de Berlim a muralha da China, e me vi -
pulando - de forma repentina os muros das casas da minha rua de infância. Quando
eu era criança nenhum muro me impedia, tenho as cicatrizes vivas pelo corpo
como prova da minha habilidade e penso sempre que se não tivéssemos sido
crianças pobres a vagar esquecidas por telhados roxos, como pequenos gatos,
teríamos ido juntos ver os restos dos famosos muros que caíram mundo afora, ao
invés de gastarmos nosso tempo construindo esses invisíveis muros (interiores),
cercados por livros, cafés, sucos e jabuticabas, para nos protegermos da dor da
queda do muro do mundo.
Eu sempre quis embarcar em um navio
que me levasse até a Antártica onde poderia comparar a pequenez de nossa vida
com a eternidade das baleias ou com a poesia dos icebergs, mas medos
imaginários e falta de coturnos apropriados me impediram de caminhar até a
Islândia, (eu, que sempre sonhei com um casaco rosso e uma taça de vinho) onde
poderia ficar isolada do tempo e das lembranças do meu corpo que servia de trampolim
rumo a uma memória antiga como se fosse possível adiar a morte que escorria em
forma de sêmen sobre as veias desoladas do meu pé e que me lembravam um poema
antigo e eu não senti nada além de uma tristeza semelhante à tristeza que senti
ao reconhecer seu corpo descarnado, finalmente desenterrado de dentro de mim.
Há mil histórias contadas a respeito
de improváveis heróis postados em improváveis muros a espera de inexistentes
bárbaros. Acho que trocamos as últimas cartas escritas pela humanidade, quando
ainda acreditávamos que a loucura do amor seria responsável pela diluição das
regras e das fronteiras e que nosso jogo de amarelinha nunca nos levaria nem
para o sul nem ao inferno silencioso dos subúrbios ou de nós mesmos.
Tínhamos línguas afiadas e penugens de anjo e a
ilusória eternidade dos nossos gozos se alternava entre a tristeza dos
autorretratos de Frida Kahlo e o entusiasmo das canções de guerra feitas para
alegrarem os feridos e seus espermas desapontados em noites vazias ao
observarem os corpos dos seus companheiros voltarem ao pó, antes que os
demônios acordassem e os pássaros viessem beber ao sol e devorar os mortos,
enquanto eles sobreviviam.
Nós estávamos doentes, vivíamos fora do tempo, possuídos pelas ideias fixas dos fantasmas, das
dimensões e dos duplos, procurávamos nos mapas a rua de mão única da infância. Em breve partiríamos, sabíamos que nossos corpos se repartiriam, e
mesmo assim não conseguíamos parar de mover nossos quadris, apesar de sabermos
que da nossa união não surgiria nada de concreto além das cartas e dos textos
publicados nos jornais manchados de sangue de Madrid. Tínhamos os mesmos defeitos. Nossos antigos amantes tinham filhos com nomes de Stalin, Mussolini, Idi Amin Dada, Salazar, Pinochet, entre outras excentricidades, coincidências com as quais nos espantávamos, enquanto você desembaraçava meus cabelos entre copos de água e partidas de xadrez. Éramos gêmeos na agonia.
Quando enfim nos reencontramos, houve uma confabulação interna que inutilizou as palavras e nenhuma aventura sentimental pôde ser contada. Naquela tarde preguiçosa apenas as pombas brancas arrulhavam nos telhados em sinal de paz e comentamos sobre as mãos cortadas de Che Guevara em um recanto distante da Bolívia enquanto segurávamos com o polegar e o dedo indicador nossas xícaras burguesas de café amargo. Minha cabeça era uma rosa gigante que se desfolhava na balada silenciosa dos seus lábios. Não caminharias nunca mais para meus seios, nem se aninharia feito uma menina entre minhas pernas. Nunca mais me seria permitido triturar com a ponta dos dedos seus ossos escondidos. Eu tinha sido um menino mau, curioso e desprovido de sonhos bailarinos. Disso, nós dois sabíamos.
- Nerval se enforcou com o manuscrito de Aurélia no bolso. Eu disse para puxar assunto.
- Paris não é uma festa e a força da vida não nos leva mais pela mão. Ele comentou sombrio enquanto dobrava seu agasalho e retirava da bolsa um exemplar de O Labirinto da Solidão.
Os sonhos das nossas infâncias violentas desenrolaram-se da boca
das sereias e soubemos que o irreal nunca mais se levantaria em aurora e levaria nossos
corpos de volta aos chuveiros do paraíso, o tempo havia nos mastigado feito
vidro, até a água agora nos feria e nós havíamos nos rendido como soldados que
retornam mudos e cheios de cicatrizes e tatuagens dos campos de batalha e se casam com a primeira dama que avistam. Agora eu era uma mulher sentada em volta de um círculo de fogo folheando, como as outras, um livro de gravuras, e, de dentro dele, um menino me sorria.
Na nossa última viagem ao fim da
noite você me disse que as fogueiras da inquisição foram transformadas em um
estado de espírito, e que nas suas andanças você havia colocado um cadeado na
Pont de Arts com a finalidade de deixar guardado ali o nosso amor e eu te
contei que ainda adorava a sombra gelada dos homens encantados que se fazem
presentes pela pele das palavras e que não acreditava nos pecados das histórias
bíblicas e nem na maldade das bruxas. Você não respondeu. Nos embriagamos de néctar e em vão
procuramos no reflexo perdido dos nossos copos nossos corpos dionisíacos,
carregávamos, como escudo, nossos livros, acendemos velas e incensos para
os deuses da poesia, rimos, mas isso não foi suficiente para impedir a verdade pressentida em um
beijo de despedida e no verão seguinte havíamos fugido e mudado de corpos e de
vida.
Te escrevo novamente uma carta, mas
quero que saiba que essa carta não é para você, porque você, assim como esses
muros, e talvez como essa carta, não existe, o que existe são apenas os
ruídos que percorrem lentos as ruínas dessa antiga construção que por
falta de necessidade e uso ruiu. Sim, talvez você se espante ao descobrir
assustado que, depois de tanto trabalho, algo roeu nossos muros, e, sentado no
meio fio ao lado de um velho rato, descubra que isso não tem a menor
importância para nossa arqueologia, porque, exceto em um livro de Kafka, ou em
algum labirinto perdido da literatura, ninguém passaria a vida plantado como
uma sombra ao lado de um escombro escavado cujo eco repete sempre a palavra
muro.
Adorei, Vanessa!! ;-)
ResponderExcluirGostei muito, ritmo explícito !
ResponderExcluirVocê é uma escritora maravilhosa Vanessa!
ResponderExcluirMe identifico demais com sua escrita...Inspiradora!
Parabéns!
Beijos Musicais & Poéticos!
Olá Vanessa! gostei do Blog e do ritmo, é envolvente Parabéns. Um grande abraço Luiz D Salles
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