A IMPORTÂNCIA DOS
TELHADOS.
Foram nos contar que havíamos
sido convocados novamente por causa do nosso amor febril, mas sabíamos que era
mentira. Desde que fugimos pela primeira vez do subúrbio operário que tentam
nos enganar com ramalhetes turvos em oposição ao céu, sempre límpido e cinza,
refletido no convexo das nossas íris. Nós os incomodamos. Também é mentira a
afirmação de que nossa oposição cerrada ao regime chamado de azul, tão avesso
ao vermelho das nossas vísceras, começou quando nos espantamos com os livros e
com o trem. Ela nasceu conosco, e foi se consolidando, aos poucos, na mesma
proporção em que o regime crescia. Quando fomos, enfim, encontrados, julgados e
desterrados, implantaram um objeto pequeno e não identificado nos nossos
ouvidos para servir de ponte amaldiçoada entre nós e eles, mas nós o
explodimos.
Não, nós não somos livres, ninguém
é, nesse mundo devastado a escravidão assumiu uma nova forma e alguns até dizem
que ela não existe, já que agora que o regime evoluiu e todos podem vagar pelos terrenos descampados das fábricas procurando restos. Os
que querem comer decentemente, ainda trabalham, mas só ganham comida e são obrigados a abandonar suas crianças sujas, famintas e remelentas em casa,
porque todas as escolas foram fechadas. As escolas foram consideradas inúteis e
destruídas e os professores foram fuzilados em represália à tanta ineficiência. Fazia tempo que ninguém aprendia nada lá e o governo atual se
desobrigou da responsabilidade alimentar dos seus membros. No tempo em que a gente ainda estudava e
achava que a escola tinha alguma serventia esse tipo de sociedade era chamada
de distopia, agora, nada mais tem sentido nem nome, e diante da nossa tristeza
e tentativa fracassada de nomear as coisas, as crianças reagem com sorrisos vazios e
mudos.
Desde que fomos expulsos
encontramos muitas crianças pelo caminho. Antes da grande catástrofe todos
diziam que as crianças eram o futuro, agora, só as mais fortes conseguem
sobreviver, as mais vorazes, capazes de caçar cães selvagens e pombas doentes e
não há nada que possamos ensinar para elas ou que elas queiram aprender, comer
lhes basta, e nós apenas lhes fazemos companhia.
Aos poucos, fomos abandonando os
velhos hábitos, primeiro, deixamos de tomar banho, depois, de usar talheres, e, apesar
da infestação de piolhos, parte da população ainda tem vergonha de raspar os
pelos das cabeças e dos sexos e se arrastam pelos terrenos baldios com os
cabelos desgrenhados e farrapos de cuecas e calcinhas, com os semblantes cada dia mais parecidos com os dos duendes. Ninguém tem mais
residência fixa e depois do desastre ecológico que se abateu sobre o planeta
nunca mais fez frio e, em breve, todos andarão nus e carecas pelo país (de
acordo com as medidas de segurança e higiene decretadas), e será como se sempre tivesse sido assim. Em vão,
nós mostramos fotos de bonecos de neve ou nos vestimos com alguns casacos e
perucas antigas, mas sempre somos recebidos com sorrisos incompreensíveis.
Também tentamos mostrar para os pequenos seu próprio crescimento, com marcas na
parede, para lhes ensinar a noção de transformação e de tempo, a moda antiga, e
enterramos os mortos que encontramos pelo caminho, mas eles não se importam e nem nos imitam.
Às vezes, pedimos comida para
os donos dos canis. Eles vivem nos arredores do que restou da cidade e são
responsáveis pelo abastecimento de carne do governo. Para receber nosso pedaço, geralmente
vindo da morte de algum cachorro louco, oferecemos alguma menina, ou menino, se
o proprietário preferir. Até hoje,
ninguém do nosso bando morreu, mas alguns não retornaram. Viver ao relento deve ter nos dado uma
resistência maior que a dos operários, sempre enfurnados naqueles espaços
escuros e opressivos das fábricas, cada dia mais inúteis, já que ninguém tem
dinheiro para comprar nada. Nas fábricas,
morrem pessoas todos os dias e elas também não são enterradas, apesar de alguns
protestos hipócritas de alguns empresários que têm outros planos para os
corpos reaproveitados pelos donos dos canis.
As igrejas também estão vazias.
No início, padres, pastores, kardecistas e pais de santo se uniram em uma
tentativa vã de solidariedade, mas diante da impossibilidade de se sustentar o
mundo com caridade e do fato de alguns pastores terem se aliado à cúpula
do governo em uma franca atitude de covardia, os fiéis debandaram,
inconformados com um Deus tão injusto que como último ato de bondade tornou as
pessoas estéreis.
Também não existe mais música ou
tecnologia. Muitos consideram como marco desse novo tempo o dia em que o último celular do planeta tocou, mas ninguém sabe ao certo que dia foi esse e nós fracassamos ao tentar consertar algumas filmadoras para fazer o registro
do grande final e deixar alguma explicação espantada para o futuro, apesar de
não acreditarmos nisso, já que até a água está contaminada e o mundo, ou, pelo menos, esse
mundo, se desmancha lentamente com a memória apagada por incêndios constantes em museus e bibliotecas velhas (incêndios
iniciados pelo governo) e o grande valor dos livros e revistas encontrados pelo
caminho é o de propiciarem a oportunidade ideal para que possamos cozinhar as
carniças que nos alimentam. No inicio, antes das provisões acabarem e do clima ficar hostil, foram
empreendidos esforços para organizar grupos de leitura coletiva nesses espaços,
porém, a escassez dos alimentos aflorou os instintos primitivos dos homens e
resultou em um uso muito mais imediato e útil para os livros. Atualmente, todas
as bibliotecas públicas do passado já foram consumidas, mas, às vezes,
algum sortudo encontra alguma perdida, que pertenceu a algum avançado ancestral, e uma grande
fogueira é erguida no local em um raro momento de trégua entre o que restou da
humanidade. É um momento mágico, mas que corroborou para a impossibilidade de
qualquer registro escrito, todo papel encontrado é imediatamente queimado, e só nos resta escrever nos muros, palavras
incompreensíveis, que quase ninguém lê e, por isso, fomos
convocados, em vão, porque estão acabando as tintas e as palavras. Logo, a humanidade ficará muda.